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Cultura e o nosso comportamento: um paralelo entre crianças selvagens e orcas em cativeiro

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Crianças selvagens


4 de novembro de 1970, Los Angeles, Califórnia. Dorothy Irene Wiley, uma estadunidense com seus 40 anos de idade e parcialmente cega, é atendida em casa por uma assistente social devido a problemas de saúde. Ouvindo barulhos vindos de um quarto completamente escuro, a assistente social decide investigar e encontra uma criança: Genie Wiley, filha de Dorothy. É revelado então um caso que choca a sociedade estadunidense da época: Genie havia sido mantida em cativeiro pela própria família, desde o seu nascimento até os seus 13 anos de idade, sem nenhum tipo de contato e convívio social. 

Além de ser salva dessa situação, Genie vira acima de tudo uma fonte de curiosidade: a jovem não fala, não se alimenta da forma que se esperaria e, em última instância, não consegue entender o mundo em que está inserida. Ela não parece ter desenvolvido nenhum tipo de norma ou conduta social, representando o caso mais famoso de uma criança selvagem. Crianças selvagens não têm as habilidades sociais básicas que são normalmente aprendidas no processo de socialização, em decorrência da ausência de contato humano – por socialização, entende-se o processo por meio do qual se aprende as normas e valores de onde o indivíduo vive, sendo um processo fundamental nas nossas vidas. 

Figura 1: Genie, o caso mais bem documentado e estudado de uma “criança selvagem”. Vítima de uma história de vida trágica, Genie passou a maior parte de sua infância isolada de qualquer convívio social e, mesmo após tentativas que duraram anos, não foi capaz de desenvolver o uso da língua de forma típica nem de adquirir valores e comportamentos que eram esperados. Existe um documentário, em inglês e sem legendas, sobre Genie.

Essas crianças, mesmo após diferentes tentativas e técnicas ao longo de diferentes períodos, não conseguem desenvolver domínio da língua que é tradicionalmente falada onde vivem nem exibir comportamentos e conjuntos de valores típicos da sua região e comunidade – cabe destacar que a língua desempenha um papel fundamental nesse processo de socialização, uma vez que isso acontece através de interações linguísticas com os nossos tutores. Nesse sentido, pode-se dizer que aprender uma língua significa aprender uma forma de enxergar o mundo. Caso queira entender melhor como somos socializados, clique aqui e aqui.

Logo, Genie suscita perguntas que intrigam a comunidade científica e a sociedade da época: por que ela não se comporta “normalmente”? E a natureza humana de Genie? Existe natureza humana? Vendo como Genie vive, come, anda e se comporta de forma geral, o que a diferencia dos outros animais? Foi a ausência de alguma coisa que fez com que Genie acabasse sendo uma criança selvagem?

Figura 2: Dina Sanichar, o menino-lobo. Um dos casos mais famosos de ‘criança selvagem’. Dina foi criado por lobos na Índia até os seis anos, longe da convivência com as pessoas. A sua descrição na Wikipédia diz: “nunca aprendeu a viver em sociedade e nunca aprendeu a falar. Preferia alimentar-se de carne crua e não gostava de alimentos cozidos” (https://pt.wikipedia.org/wiki/Dina_Sanichar).

Orcas selvagens?


Talvez, para a última pergunta (“Foi a ausência de alguma coisa que fez com que Genie acabasse sendo uma criança selvagem?”), você tenha respondido algo como: educação, sociedade ou cultura, certo? Vamos pensar em mais uma pergunta: educação, sociedade e cultura são coisas exclusivamente humanas? Para responder isso, vamos falar de cinema. Durante os anos 1990, um dos filmes que marcou a infância de muitas pessoas foi Free Willy, a famosa quadrilogia sobre uma orca que tenta escapar de um parque aquático com a ajuda de seu amigo humano, o menino Jesse. Nos filmes, assim como no desenho, Willy e Jesse conseguem tranquilamente conversar um com o outro e estabelecem uma amizade muito forte. Tudo dentro do mundo ficcional, claro.

Figura 3: Poster do filme “Free Willy”

Mas você sabe o que aconteceu com a orca por trás do personagem Willy? O nome dela era Keiko. Keiko, uma orca macho, foi capturado pela indústria do entretenimento desde muito cedo, não teve a oportunidade de crescer em convívio com outras orcas e, quando devolvido ao oceano, não conseguiu ter uma vida funcional, não sendo capaz de se alimentar sem a ajuda de um humano instrutor e nem de se comunicar com os membros de sua espécie, lembrando o exemplo das crianças selvagens. Existe um documentário contando a história de Keiko.

Figura 4: Poster do documentário “Keiko The Untold Story”, lançado no Brasil como “A Verdadeira História de Free Willy”

Além de Keiko, podemos pensar em outros exemplos de “orcas selvagens”. Neste vídeo, podemos ver Lolita, conhecida como “a orca mais solitária do mundo”. Em uma pequena piscina, podemos vê-la completamente imóvel. Na natureza, orcas passam 99% de suas vidas em movimento, viajando em uma média de 20 km/h e percorrendo distâncias diárias entre 160 e 225 km. O que está acontecendo aqui?

Outro caso muito famoso é o de Dawn e Tilikum. Dawn foi uma treinadora do SeaWorld, onde ela trabalhou com orcas por quinze anos e foi a garota-propaganda da empresa. Dawn foi morta por uma orca chamada Tilikum. O caso ficou famoso após ser exposto pelo documentário “Blackfish”. O que mais chama a atenção no caso de Dawn e Tilikum é que, após várias décadas de estudo de orcas na natureza, nunca foi documentado um ataque sequer de uma orca contra um humano. Elas apenas atacam em cativeiro. Tilikum também esteve envolvido na morte de duas outras pessoas: Keltie Byrne e Daniel P. Dukes, além de uma série de outros ataques quase mortais. Podemos comparar o comportamento de Tilikum com o comportamento de orcas vivendo em natureza quando encontram humanos. Além do comportamento agressivo, ele apresentava outros comportamentos incomuns para a espécie. 

O que faltou para Keiko, Lolita e Tilikum? Seria a mesma coisa que faltou para Genie e Dina? 


Genie, Dina, Keiko e Tilikum: seres culturais


Qual a relação da cultura com o nosso comportamento? Com tudo isso em mente, podemos descrever cultura da seguinte forma: não apenas como costumes, usos, tradições e hábitos – como tradicionalmente é discutida –, mas também como um conjunto de mecanismos de controle – planos, receitas, regras, instruções – para governar o comportamento. Pode-se dizer que a nossa espécie é um animal que depende de tais mecanismos de controle além dos instintivos e genéticos para organizar o nosso comportamento.

Nós precisamos de sistemas simbólicos (a língua sendo o principal deles. Para entender o que é um sistema simbólico, clique aqui e aqui) que possam nos guiar pelo mundo porque a nossa constituição biológica não é suficiente para isso. Por outro lado, acredita-se que os padrões de comportamento dos outros animais, inclusive as orcas, se bastam em suas estruturas físicas; supostamente, a genética governaria suas ações com pouquíssima variação, como se fossem “marionetes biológicas” – os outros animais vivem com base no instinto, dizem. Quanto ao ser humano, sem a direção de padrões culturais, o nosso comportamento tende a ser um simples caos de atos sem sentido, e nossa experiência a não ter praticamente qualquer forma. A cultura não é apenas uma questão secundária da existência humana, mas uma condição essencial para ela. Foi isso que faltou para Genie e Dina. E para as orcas?

Antes de responder essa pergunta, podemos pensar em como a cultura é responsável pela variação no comportamento humano. 


Mondo Cane


Um ótimo exemplo da variedade de comportamentos presentes entre os seres humanos pode ser visto no documentário Mondo Cane. Mondo Cane é um documentário italiano e consiste em uma série de cenas soltas que mostram vislumbres de comportamentos culturais ao redor do mundo com a intenção de chocar ou surpreender o público ocidental. Por exemplo, com foco em uma seção sobre como diferentes grupos de seres humanos são ensinados a se relacionar com outros animais, sobretudo o cachorro, o filme dá o exemplo de três culturas diferentes: uma na Nova Guiné, uma em Taiwan e uma nos Estados Unidos.

Primeiramente, na  Nova Guiné, numa celebração que se repete a cada cinco anos, em questão de horas, dezenas de porcos são abatidos com golpes na cabeça com varas de madeira e comidos, e depois disso a comunidade parcialmente canibal retorna ao seu estado praticamente perpétuo de fome. Os cães, no entanto, são alimentados com um pouco da carne de porco e tratados com carinho e respeito. Em Taipei, Taiwan, os cães são criados e abatidos para restaurantes locais de carne canina. Por sua vez, no Pet Haven Cemetery em Pasadena, Califórnia, donos de cães enterram e lamentam a morte de seus entes caninos queridos.

Pense em como tratamos os cachorros de forma geral na cultura brasileira. O quanto isso é “natural”, “inato” e quanto é fruto de “mecanismos de controle – planos, receitas, regras, instruções” que simbolizam a nossa realidade?


Figura 5: Poster do filme “Mondo Cane”

Orcas em cativeiro: “orcas selvagens”?


Orcas que vivem na natureza crescem em sociedades muito complexas com longos períodos juvenis e relacionamentos diferenciados, inseridos em redes sociais complexas que dependem do aprendizado e da memória. A vida social das orcas dentro dessa estrutura social é caracterizada por comportamentos transmitidos de uma geração para outra, que diferem entre os grupos e caracterizados por sofisticadas capacidades de aprendizagem social. Alguns desses comportamentos das orcas são exemplificados por diferentes estratégias de caça aprendidas e outras formas de comportamentos cooperativos, além de dialetos vocais.

Sendo assim, uma jovem orca vivendo na natureza vira parte da rede social de sua comunidade, muitas vezes uma parte central dela e, nesse período, tem várias oportunidades para aprender socialmente o que é ser o indivíduo de uma determinada unidade matrilinear, grupo, clã e comunidade (para mais detalhes sobre a organização social das orcas, clique aqui). Aprende como se comportar, do que deve se alimentar e até como deve se comunicar, oportunidade ausente da vida de uma orca em cativeiro.


Cultura no caso das orcas


Como dissemos acima, orcas aprendem diferentes estratégias de caça e dialetos vocais. O dialeto do grupo é aprendido por cada indivíduo, imitando sua mãe durante a infância (ouça aqui uma interação entre mãe e filhote), mas também há evidências de aprendizagem em estágios mais tardios na vida desses animais, além de aprendizados entre membros do mesmo grupo, em um processo de aprendizagem horizontal (em que há aprendizagem entre membros da mesma geração). 

Os dialetos são tão diferentes que mesmo um ouvinte inexperiente consegue perceber: ouça aqui os diferentes dialetos de orcas que vivem na Rússia: dialeto 1 e dialeto 2. Compare também orcas que vivem na região dos Estados Unidos e do Canadá. Além disso, grupos diferentes de orcas apresentam estratégias de caça que são herdadas e transmitidas pelos grupos em que crescem. Veja duas estratégias aqui e aqui. Lembrando que muitas dessas orcas habitam a mesma região e interagem entre si, no caso das russas, e as estadunidenses e canadenses compartilham as mesmas águas. As diferenças são impressionantes, não são? 

Por fim, um caso marcante é o da orca conhecida como Tahlequah. Seu segundo filhote, Tali, morreu logo após o nascimento, e Tahlequah carregou seu corpo por 17 dias em uma aparente demonstração de luto que atraiu muitas pessoas. 

 

Figura 6: Os 17 dias de luto de Tahlequah

Nesse sentido, cabe destacar um aspecto do cérebro das orcas: o lobo límbico delas, que em humanos está associado, entre outras coisas, ao processamento emocional e à formação de memórias, é extremamente evoluído nas orcas, muito maior e mais complexo do que no cérebro humano. Além de um ampliamento no sistema límbico das orcas, a arquitetura celular no cérebro delas também aponta para uma vida emocional mais complexa que a nossa. Em números relativos, as células fusiformes, associadas ao processamento da organização social e empatia, são encontradas em maior quantidade nas orcas do que em humanos. Quais impactos a ausência do aprendizado de uma cultura pode ter sobre o comportamento de animais dessa natureza? É o que vemos no caso de Keiko, Lolita e Tilikum.

Figura 7: Comparação entre o giro do cíngulo e o sistema límbico do cérebro de um ser humano (à esquerda) e de uma orca (à direita), responsáveis, por exemplo, pela criação e armazenamento de memórias, aprendizagem e emoções. No caso das orcas, ambas as regiões são maiores e, marcado em azul, temos o que é tecnicamente chamado lobo paralímbico, uma região inexistente no cérebro humano, tamanho o desenvolvimento do sistema límbico das orcas. É uma região altamente desenvolvida que estabelece conexões profundas com o sistema límbico. 

Vai um linguista aí?


Em outras palavras, essas considerações sugerem não existir o que chamamos de natureza humana independente da cultura. Como nosso sistema nervoso central cresceu, em sua maior parte, em interação com a cultura, ele é incapaz de governar nosso comportamento ou organizar nossa experiência sem a orientação fornecida por sistemas simbólicos. O fato desses diversos aspectos de humanidade emergirem juntos, numa interação complexa uns com os outros, em vez de surgirem em série, é de grande importância para compreendermos o comportamento humano, pois sugere que o nosso sistema nervoso não permite apenas que ele adquira cultura, mas exige que ele faça isso para poder funcionar. É através da cultura, um sistema ordenado de significados e símbolos, que os indivíduos definem seu mundo, expressam seus sentimentos e fazem seus julgamentos.

E as orcas? Orcas são animais com cérebros grandes e complexos e desenvolvem fortes laços sociais e familiares, assim como os humanos. São seres culturais que diferenciam e identificam seus próprios grupos por meio de dialeto, preferência de presa, tamanho do grupo e muitas outras tradições aprendidas. Elas têm um período juvenil prolongado de aprendizado social e os laços emocionais entre mães e filhotes, assim como entre outros parentes, são extremamente fortes. Ao mesmo tempo que essas características estão associadas a um alto grau de inteligência, sensibilidade e complexidade social, isso também indica quais capacidades e comportamentos naturais as orcas precisam vivenciar para que possam se desenvolver. Assim como nós, o interior das orcas precisa do exterior para que possa se desenvolver. Assim como nós, elas são seres culturais.

Por fim, como destacamos acima, o processo de socialização acontece em grande parte através da língua. No “Vai um Linguista aí?”, temos uma série de três textos sobre quem são as orcas, a cultura, a organização social e o sistema semiótico (a língua, talvez?) por meio do qual elas vivem. Isso quer dizer que as orcas, além de cultura, têm língua? Qual a relação entre língua e cultura? Nessa série, explicamos tudo isso. Não deixe de conferir!

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