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Tomando a pílula do real: a linguagem que criou Matrix e o todo o resto do mundo

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Matrix, o filme clássico realizado pelas irmãs Lana e Lilly Wachowski foi, além de um grande sucesso, um gatilho para pensarmos em questões muito interessantes em áreas diversas como Filosofia e Ciências da Computação. O filme levou sua audiência a se questionar sobre muitas coisas:

Como deveria ser a relação entre humanos e máquinas?

Quais são os limites da inteligência artificial?

Vale a pena abandonar o mundo que é familiar e tomar a pílula vermelha?

Qual a fronteira, que nem sempre é muito óbvia, entre o que é real e o que é virtual?

Neste artigo, iremos abordar os aspectos linguísticos dessas questões, e entender um pouco mais do que é ‘real’ desde o ponto de vista das Ciências da Linguagem. E então, vamos correr atrás do coelho branco?


É ar o que respiramos…?


Na famosa sequência do treinamento de Neo, no dojo, quando Morfeu acaba de explicar pela primeira vez – tanto para Neo quanto para nós, a audiência – o que é a Matrix, ele diz a certa altura:

Do you believe that my being stronger or faster has anything to do with my muscles in this place? Do you think that’s air you’re breathing now?

Você acha que o fato de eu ser mais forte ou rápido que você tem alguma coisa a ver com meus músculos, ou com esse lugar aqui? Você acredita mesmo que, aqui e agora, o que você está respirando é ar?

Mais adiante, Morfeu continua:

What is real? How do you define ‘real’? If you’re talking about what you can feel, what you can smell, what you can taste and see, then ‘real’ is simply electrical signals interpreted by your brain.

O que é real? Como a gente pode definir o ‘real’? Se a gente estiver falando de visão, audição, olfato, tato e paladar, então esse ‘real’ é somente um monte de sinais elétricos que o nosso cérebro é capaz de interpretar.

Com isso, o que as irmãs Wachowski propõem através das perguntas de Morfeu é definir o que é real, e questionar se esse real é o que existe concretamente, ou aquilo que é interpretado pelo nosso cérebro, ou seja a experiência humana.

Do ponto de vista da Ciência Linguística, a experiência humana é vista como o significado das coisas, ou melhor, é vista como: os significados são as coisas. Isso parece confuso, mas na verdade é muito simples, pois faz parte da nossa vida cotidiana.

Como exemplo, vamos tomar um objeto do nosso dia-a-dia, como uma cadeira. Para nós, humanos, uma cadeira (o objeto) e o significado de cadeira (móvel utilizado para sentar) são iguais. Em outras palavras, o objeto cadeira só existe se for usado para sentar; isto é, se não servisse para sentar, o objeto cadeira não existiria. Nas culturas em que as pessoas sentam no chão, em almofadas, tapetes, etc. não existe a palavra ‘cadeira’, nem o significado de cadeira e, como consequência, o objeto cadeira também não existe. Assim, do ponto de vista da Linguística, quando falamos do ‘real’ e da ‘nossa experiência’, estamos falando da mesma coisa.


A pílula do real


Em uma outra cena do filme, Morfeu oferece a Neo a escolha de conhecer ou não a Matrix, simbolizada pela escolha entre tomar a pílula azul ou a pílula vermelha. Essa cena, que acabou entrando para a cultura pop dos anos 2000, e está viva até hoje, também coloca em questão o real, mas aqui em contraponto com o que é virtual, ou uma simulação do que seria o real.

You take the blue pill – the story ends, you wake up in your bed and believe whatever you want to believe. You take the red pill – you stay in Wonderland and I show you how deep the rabbit-hole goes.

Se você tomar a pílula azul, é aqui que a história acaba. Você vai acordar na sua cama e poder acreditar no que quiser. Mas se você tomar a pílula vermelha, então vamos viajar para o País das Maravilhas, e eu te mostro até aonde vai a toca do coelho branco.

Na cultura pop, a escolha entre as pílulas azul e vermelha passou a querer dizer a escolha entre saber ou não sobre uma verdade oculta. Até nos dias de hoje a pílula vermelha simboliza descobrir uma grande verdade, especialmente sobre o funcionamento do mundo.

FIGURA 1. Pílula azul ou vermelha?

No filme, por isso, tomar a pílula vermelha e descobrir o que é a Matrix é o caminho para revelar a “grande verdade”, que não é a vida real como Neo (então Sr. Anderson) imaginava. A Matrix é uma realidade virtual que se contrapõe à “realidade real”, para a qual Neo começa a ter acesso ao tomar a pílula vermelha.

Para quem assiste, o filme nos provoca questionar: “Será que a Matrix poderia ser (se já não é) verdade?”, “será que nós vivemos em uma realidade virtual, criada por computadores inteligentes?”, “e se não forem computadores, e estivermos em uma realidade virtual criada por outras pessoas (do futuro, ou alienígenas)?

No final das contas, as irmãs Wachowski nos fazem um convite para pensarmos o quanto de verdade pode haver na ideia de Matrix. Ou seja, quanto de “realidade real” e de “realidade virtual” existe no nosso mundo? Quanto das situações que vivemos no nosso dia-a-dia são “reais” ou “ilusões”, feitas de “coisas verdadeiras” ou “fantasias inventadas”?

Do ponto de vista da Ciência da Linguagem, um aspecto importante para ser considerado – que vamos falar com detalhes mais adiante – pode ser resumido da seguinte forma.

Antes mesmo de vivermos em mundo real, ou virtual, ou verdadeiro, ou ilusório (ou qualquer outro tipo de “invenção” dessas), nós, seres humanos, vivemos em um mundo de significados, que é feito de símbolos e linguagens. Como dissemos antes, “os significados são as coisas”. E esse ‘mundo de significados – simbólico e linguístico’ no qual vivemos tem o mesmo valor para nós, independentemente se a vida é feita de “coisas reais” ou “coisas virtuais e imaginadas”.

De forma muito interessante, isso tem a ver com a própria maneira como a nossa espécie evoluiu, e o papel central que o ‘mundo simbólico e de linguagem’ desempenha na nossa experiência ao longo de toda a nossa vida.


O papel central da língua para a espécie humana


A língua tem um papel central para a nossa espécie por várias razões. Para o assunto que aqui tratamos, citamos duas.

Primeiro, é por meio da língua que nós somos socializados. Em outras palavras, nós conseguimos passar de bebês da espécie humana para pessoas com identidade, valores, relações com outras pessoas, etc. porque aprendemos a falar e entender a língua da comunidade onde vivemos. Este assunto está detalhado em uma outra postagem, que pode ser lida aqui (LINK)

A segunda razão é que a língua cria a realidade que vivemos para nós. Ou seja, a forma como entendemos o jeito que o mundo funciona, as leis da natureza, a nossa própria experiência de como o mundo é, e assim por diante, são também o resultado de como a nossa língua é capaz de explicar o mundo para nós. Isso significa que a forma como vemos o mundo e entendemos como o mundo funciona é totalmente dependente da língua que falamos. Inclusive, muitos estudos sobre as culturas humanas na Antropologia, as relações sociais na Sociologia e os discursos de diferentes povos na Linguística revelam com bastante clareza esse ponto.

Isso também pode estar parecendo confuso, mas, quando paramos para pensar um pouco, é da mesma forma muito simples, pois faz parte da nossa vida cotidiana.

Como exemplo, vamos tomar um evento da natureza bastante comum na nossa vida, como a chuva. Se existe um fenômeno da natureza que acontece em toda parte e que influencia a vida de todos os povos do mundo, esse fenômeno é a chuva. Ela é responsável por períodos de seca e cheia de rios e lagos, abundância de plantações e vegetação, movimentos migratórios de animais e assim por diante. Por isso, um dos motivos de nós humanos termos sobrevivido enquanto espécie é porque aprendemos a lidar com os regimes de chuva nos locais onde vivemos.

Devido ao fato de a chuva ser um fenômeno da natureza, e também de participar da mesma forma na vida dos povos humanos, é plausível imaginar que todos os povos humanos veem e entendem a chuva da mesma forma que nós:

“Chuva é um fenômeno meteorológico que resulta da precipitação das gotas líquidas ou sólidas da água das nuvens sobre a superfície da Terra” (https://pt.wikipedia.org/wiki/Chuva).

Essa definição de enciclopédia parece ser bastante simples e geral, de forma que deve ser aceita como sendo uma verdade, não é mesmo?

Porém, se pararmos para pensar, ela vem, no fim das contas, de pesquisas científicas em áreas como Meteorologia, Geologia e Física. Então, é uma explicação que só faz sentido para os povos que possuem instituições de conhecimento formal, como por exemplo escolas e universidades. Para outros povos que não enxergam o mundo com os olhos meteorológicos, geológicos ou físicos, essa explicação não quer dizer nada.

Para alguns povos, a chuva são as lágrimas dos deuses, que com seu choro abençoam a terra para que a plantação seja farta. Já outros entendem a chuva como a tristeza dos deuses pela morte ou infortúnio de pessoas a quem amam.

Texto 1 – Lenda sobre a chuva do povo Maxacali

A lenda da chuva

(conforme relato verbal do índio Puhuy Maxacali, ouvido e transcrito por Luiz Carlos Lemos)   https://rpofrosamaria.blogspot.com/2012/01/lenda-da-chuva-conforme-relato-verbal.html?m=1

    “Naquele tempo, começo do mundo, não tinha chuva. Era só dia e noite, sol e lua e nada mais. Não tinha bichos, não tinha planta, não tinha árvore, não tinha verde. Só pedra grandes e rios grandes no meio das pedras. Nada mais.
    Os homens só comiam os peixes dos rios, que eram muitos. Mas, se não comiam peixe, morriam de fome porque não tinha outra coisa não.
    E os peixes então pularam muito alto e descobriram que no céu tinha água também, nas nuvens grandes. Então eles pularam mais alto ainda e fugiram para as nuvens e foram viver nas águas que moravam no céu.
    E os homens, que não tinham mais peixe para comer, começaram a morrer de fome na terra inteira, em cima das pedras, na beira dos rios vazios de peixe.
    Os peixes olharam lá do céu e viram os homens morrendo e chorando, todos com fome. E eles ficaram com pena dos homens e começaram a chorar. As lágrimas dos peixes aumentaram muito as águas do céu e o céu não pôde mais segurar as águas.
    Então as águas do céu caíram em forma de chuva, que molhou as pedras, que se desmancharam em terra, e as plantas nasceram para dar comida aos homens.
    Mas os peixes sentiram saudade dos rios e começaram a pular de volta para a terra. Os que caíram nos rios continuaram peixes. Os que caíram fora dos rios viraram animais e pássaros.
    E os homens que tinham agora o que comer, juraram que só pescariam, só caçariam e só tirariam das árvores o necessário para não morrer de fome. Por este respeito que os homens têm pelos rios, pelos animais e pelas florestas, é que o mundo existe até hoje, pois enquanto o homem não matar a Natureza, a Natureza não vai deixar o homem morrer de fome”.  

Nesses casos, a origem da chuva é então contada como uma narrativa, e essa história narrada também traz o simbolismo da chuva como prosperidade, tristeza, empatia e assim por diante. Quando as crianças dessa cultura aprendem o que é a chuva, estão tendo, na verdade, uma lição de vida.

Com isso, quando uma pessoa aprende a narrativa sobre a chuva, em sua própria língua, está aprendendo também a entender como o mundo funciona de uma determinada forma. Além do conhecimento sobre o mundo, aprende também alguns valores, crenças, afetos, e formas de se relacionar com as outras pessoas de sua comunidade.

O caso da nossa cultura não é diferente. Em lugar de aprendermos o que a chuva é por meio de uma narrativa, o fazemos por meio de um texto explicativo. Esse texto também é fruto da nossa cultura, com nossos valores e crenças. Em outras palavras, aprender a falar o português do Brasil como a nossa língua significa que, quando vamos aprender sobre a chuva, isso acontece através de em um texto explicativo, escolar, baseado em conhecimentos de Meteorologia, Geologia e Física.

Texto 2 – Explicação sobre a chuva

Fonte: https://conceitos.com/chuva/  

A chuva é dos fenômenos mais comuns do meio ambiente e ao mesmo tempo mais surpreendente dentro de sua simplicidade. Em termos científicos, a chuva não é nada mais do que a precipitação da água das nuvens para a terra. Esta queda de água é produzida a partir da condensação do vapor de água que se encontra dentro das nuvens e que, ao tornar-se mais pesado, cai na terra por efeito da gravidade. A chuva é sempre líquida, ou seja, sempre em estado líquido, embora às vezes esteja acompanhada de outros estados como o gasoso (por exemplo, com a neblina) ou sólido (com o granizo). A chuva, junto com a luz solar são essenciais para a vida no planeta Terra.

Quando o vapor da água se condensa, ele fica mais pesado e se torna mais frio. A chuva é cientificamente descrita como uma precipitação em forma de gotas aproximadamente com 0,5 mm de diâmetro. Quando estas gotas são menores, este fenômeno recebe o nome de garoa. Além disso, existe outro fenômeno relacionado com a chuva menos conhecido que se chama virga, que acontece quando a água em forma de gotas não chega à superfície terrestre por não ter força suficiente.  

Da mesma maneira, essa é uma lição de vida para nós. Isso porque, a cultura do povo brasileiro que fala o português preza por valores como o conhecimento técnico-científico para explicar fenômenos da natureza. Isso faz do brasileiro um povo que, neste particular, tem valores como o raciocínio lógico, técnico, crítico, não-mágico, racional, etc.

Aqui é muito pertinente perguntar quem está com a verdade sobre a chuva. Afinal de contas, a chuva é “lágrimas dos peixes das águas do céu”, ou “a precipitação da água das nuvens para a terra”?

A resposta é: do ponto de vista da lógica da cultura, das relações sociais e da língua, todo mundo está certo. Na nossa lógica de falantes de português socializados no Brasil, faz sentido entender a chuva a partir de textos explicativos e descritivos, que têm como base a ciência. Já em outra visão de mundo, por exemplo, a maxacali, o conhecimento sobre a chuva é construído a partir de textos narrativos, que estabelecem uma relação entre o mundo em que vivemos, as coisas que observamos, e os valores do povo.

No fim das contas, para diferentes povos, falantes de diferentes línguas, com experiências de mundo diversas, o que importa é que a chuva é um elemento do mundo humano, que serve para conseguirmos beber, plantar, sobreviver; e para aprendermos a estreitar os laços sociais também.

Mas, insistindo, e a “verdadeira verdade sobre o que é real da chuva”?

Bem, isso ninguém sabe. E ninguém jamais irá saber. Nós tendemos a acreditar que sabemos, pois faz parte da nossa herança cultural acreditar que a nossa verdade é a verdadeira, porque ela é lógica, técnica, crítica, não-mágica, racional; ao passo que a verdade dos outros povos é lendária, mitológica, inventada e, em grande medida, infantil. Mas, no fundo, também não sabemos. É importante repetir: nós achamos que sabemos, mas somente porque faz parte da nossa cultura crer que ‘o que nós acreditamos’ e ‘a verdade’ são a mesma coisa.

No filme Matrix, esse ponto também é explorado de maneira interessante. Nas situações em que as pessoas dentro da Matrix se machucam, o seu corpo fora da Matrix também se fere. Em uma cena durante seu treinamento, Neo pula e cai de cima de um prédio. Quando é desplugado, percebe que sua boca está sangrando. Intrigado, pergunta como isso é possível.

“Neo: I thought it wasn’t real. 

Morpheus: Your mind makes it real…”

“Neo: Eu imaginei que nada era real.

Morfeu: Mas a sua mente faz tudo se tornar real…”

Assim, não importa se o corpo físico se feriu no mundo real; o que importa mais é o que acreditamos, a nossa experiência e o que ela significa para nós.


O que a língua faz por nós?


A partir desta seção, iremos explorar com maior detalhamento o papel que a língua desempenha de construir o ‘real’, a ‘realidade’ e o que é ‘verdadeiro’ para nós. Como já dissemos, isso está relacionado com o significado que as coisas possuem. Da mesma forma, é resultado do processo que nos faz passar de um animal, o Homo sapiens, para uma pessoa, ou seja, um ser humano socializado.

Esse é um processo que se dá através da língua – entendendo ‘língua’ como linguagem verbal e também todas as outras linguagens. Nesse sentido, quando pensamos bem, tornar-se humano, ser membro de uma determinada cultura, no fim das contas é igual a aprender a língua dessa cultura.

Por exemplo, se uma pessoa é socializada no Brasil desde criança, essa pessoa aprende a ser brasileira – mas não apenas como alguém que nasceu no território nacional, e sim como alguém que pertence a essa nossa cultura do Brasil. Isso significa que essa pessoa compartilha muito do seu jeito de viver com outras pessoas que foram socializadas da mesma forma, pois possuem em comum um conjunto de valores, um jeito de se comportar, um estilo de pensar, e assim por diante. E isso tudo é aprendido por meio da língua.

O jeito que a gente se senta, se veste, fala, acredita nas coisas, pensa sobre o mundo, acontece através das coisas que a gente aprendeu pela língua. É dessa forma que a gente deixa de ser um “bicho humano (Homo sapiens)” e passa a ser um ser humano social de verdade.

Se fizermos um exercício de tentarmos imaginar um cenário em que um ser humano nunca tenha convivido com outras pessoas, nunca tenha aprendido uma língua, nem vivido em uma sociedade (como é o caso das ‘crianças selvagens’), esse Homo sapiens jamais se tornará uma pessoa de verdade; sem língua, sem costumes, sem família ou amigos. Não vai entender como a vida funciona. Não saberá absolutamente nada de tecnologia, trânsito, comércio, política, legislação, religião, sistema de saúde, regras de convivência, higiene, dinheiro, habitação, conduta moral, etc.). Esse Homo sapiens jamais conseguirá tratar ou ser tratado pelos outros como uma pessoa.

Figura 2 – Dina Sanichar, o menino-lobo. Um dos casos mais famosos de ‘criança selvagem’. Dina foi criado por lobos na Índia até os seis anos, longe da convivência com as pessoas. A sua descrição na Wikipédia diz: “nunca aprendeu a viver em sociedade e nunca aprendeu a falar. Preferia alimentar-se de carne crua e não gostava de alimentos cozidos” (https://pt.wikipedia.org/wiki/Dina_Sanichar).


Construindo entidades


Um elemento importante para entendermos como a língua cria a realidade na qual vivemos é saber o que são ‘entidades’ e como elas funcionam. ‘Entidades’ são as categorias da língua que representam para nós o mundo em que vivemos.

Esse ‘mundo em que vivemos’ é um conceito que merece explicação. Apesar de nós, seres humanos, vivermos no mesmo planeta Terra que os outros animais e plantas, nós não vivemos no mesmo mundo que eles. Para começar a explorar este ponto, vamos voltar a outra cena do filme.

Após Neo ser resgatado e estar em treinamento no Nebuchadnezzar, tem uma conversa com Cypher, a qual revela bastante sobre a natureza do mundo real e a natureza artificial da Matrix.

Neo: Is that…?

Cypher: The Matrix? Yeah.

Neo: Do you always look at it encoded?

Cypher: Have to. (…) You get used to it, though. Your brain does the translating. I don’t even see the code.

Neo: Essa aí é a…?

Cypher: Matrix? É.

Neo: E tem que ler sempre em código?

Cypher: Tem sim (…). Mas você acaba se acostumando. O nosso cérebro faz a tradução. Eu nem percebo mais que está em código.

Figura 3 – A Matrix está em código, mas no nosso cérebro, ela volta a ser a Matrix.

Antes dessa conversa, nós da audiência ficamos sabendo que a Matrix cria um mundo virtual para as pessoas que estão plugadas. Então, para quem está plugado na Matrix, não existe diferença entre viver em uma realidade artificial, ou viver na realidade real.

Mas, quando Cypher diz que está vendo a Matrix em código e o cérebro dele traduz, ele não mais enxerga o código, e sim o que está acontecendo na Matrix. O que podemos dizer disso? Cypher não está plugado, porém, ainda assim, está tendo uma experiência da Matrix.

Mais adiante, na cena seguinte de Cypher, esse ponto é reforçado, quando ele conversa com o Agente Smith no restaurante:

“I know that this steak doesn’t exist. I know when I put it in my mouth, the Matrix is telling my brain that it is juicy and delicious. After nine years, do you know what I’ve realized? Ignorance is bliss.”

“Eu sei que esse bife não existe. E eu sei que, quando eu puser ele na boca, é a Matrix que vai dizer para o meu cérebro que ele está suculento e delicioso. Passados nove anos, sabe o que eu descobri? Que a ignorância é uma bênção”.

Em outras palavras, a diferença entre a realidade virtual e a realidade real não está no caráter real ou virtual dessa realidade. Mas, diversamente, está em sabermos se a realidade é real ou virtual. E, se sabemos alguma coisa porque alguém nos contou. Logo, a diferença está nas linguagens. Com isso, reforçamos mais uma vez que: a língua cria a realidade que vivemos para nós.

No último parágrafo da seção anterior, listamos atividades e coisas típicas da vida humana: trânsito, comércio, política, legislação, religião, sistema de saúde, regras de convivência, higiene, dinheiro, etc. Se pararmos para pensar bem, nenhuma dessas coisas existe na natureza, e não faz parte da vida natural no planeta Terra. Elas só existem no mundo humano. Da mesma forma, essas coisas não foram criadas com materiais naturais como ferro, pedra ou madeira; mas foram criadas com a língua verbal e as outras linguagens, símbolos, gestos, comportamentos, valores e imaginação. Assim, todas essas coisas podem ser definidas como ‘entidades’.

Do ponto de vista linguístico, mais especificamente, as entidades podem ser caracterizadas como: uma rede de relações que constroem o assunto de um texto. Isto porque é relacionando símbolos, gestos, valores, imaginação, etc. nos textos que conseguimos criar os significados das entidades. [Para uma definição mais detalhada de o conceito de ‘texto’, clicar no Link

A seguir, vamos ilustrar esse ponto com o exemplo do Texto 3. Para começar, uma dica boa para encontrarmos as entidades em um texto é procurar pelos substantivos, os adjetivos e locuções que os descrevem, e a relação que mantêm com outros substantivos. Os grupos de palavras que realizam as entidades estão marcados em negrito e numerados.

TEXTO 3 – A molécula de água

A água (1) é uma molécula pequena (2), que possui dois átomos de Hidrogênio (3) e um átomo de Oxigênio (4).  

Esse último é ávido por elétrons (5) e atrai para si os elétrons de outros átomos (6), que têm mais dificuldades em manter seus elétrons (como o Hidrogênio) (7).  

Assim, a molécula de água (8) acaba ficando com uma região negativa (próxima do Oxigênio) (9) e outra positiva (próxima dos átomos de Hidrogênio) (10).  

Esse arranjo (11) e o pequeno tamanho da molécula (12) tornam a água (13) um excelente solvente (14) e a maioria das moléculas orgânicas (aquelas que possuem carga negativa ou positiva) (15) se dissolve nessa substância (16).

No Texto 3, existem 16 entidades. Algumas são realizadas (i.e., materializadas, concretizadas) por apenas uma palavra, um substantivo:

água (1); elétrons (5); solvente (14); substância (16).

Já outras, são realizadas pelo substantivo, juntamente com outras palavras que classificam, descrevem, expressam uma porção/quantidade:

molécula pequena (2); dois átomos de Hidrogênio (3); região negativa (próxima do Oxigênio) (9).

Às vezes, até mesmo uma oração inteira é usada para descrever:

maioria das moléculas orgânicas (aquelas que possuem carga negativa ou positiva) (15)

Além desses grupos de palavras, as 16 entidades do texto são também compostas pelas relações entre esses grupos. Por exemplo, a primeira entidade que aparece no texto, água (1), estabelece várias relações. Com molécula pequena (2), possui uma relação de igualdade: água = molécula pequena. Já com dois átomos de Hidrogênio (3) e um átomo de Oxigênio (4), a relação é de parte com o todo. (3) e (4) são partes de (2), que é igual a (1).

Além da água (1), naturalmente, todas as outras entidades também vão criando relações entre si. Pelo mesmo princípio, a molécula pequena (2) também estabelece uma relação com as partes (3) e (4), e as entidades que representam os átomos de Hidrogênio (3) e Oxigênio (4) também se relacionam entre si.

Figura 4 – Rede de relações de entidades no Texto 3.

Ao final do texto, quando acabamos de ler, e conseguimos compreender quais são as entidades, com suas classes e descrições, bem como as relações com as outras entidades, entendemos, finalmente, o assunto do texto. No caso em tela, podemos dizer que o assunto do Texto 3 é a molécula de água, sua composição e formas de interagir com outras moléculas.

Neste momento, cabe chamar a atenção para um ponto importante que foi levantado no início da seção. Lá dissemos que o mundo humano e o planeta Terra são coisas diferentes. No entanto, no exemplo do Texto 3, falamos de ‘água’. E a água, certamente, faz parte da natureza e do planeta, não é verdade?

Sim, isso é verdade. Porém, a ‘água’ que existe no planeta Terra é, simplesmente, isso: um elemento que faz parte do planeta. Já a ‘água’ do mundo humano é muito mais que isso, pois é construída como uma entidade pela língua, os símbolos e a imaginação humana. Para nós, a ‘água’ é, por exemplo, “uma molécula pequena, que possui dois átomos de Hidrogênio e um átomo de Oxigênio e é um excelente solvente”. Mas ela também pode ser muitas outras coisas, como: local de prática de esportes e lazer; armazenador de energia potencial em hidrelétricas; um dos quatro elementos que o Avatar dobra; meio da navegação; transporte para dejetos na rede de esgoto; refrigerador de equipamentos, ingrediente de alimentos; e assim por diante.

Cada coisa dessas que a água pode se tornar só é possível porque nós transformamos o elemento da natureza em entidade e, em diferentes textos, vamos construindo novas relações com outras entidades, para assim criar novos conceitos do que seja ‘água’.

Vamos passar agora para um outro exemplo no Texto 4. Como poderemos observar, existe uma palavra que se repete ao longo do texto, e essa palavra foi substituída por XXXXXX. Essa palavra, realiza no texto uma entidade. Ao ler o texto, vamos tentar deduzir qual é essa entidade?

Texto 4 – Deduzindo a entidade

O que é o ciclo da XXXXXX?

É a contínua circulação da XXXXXX sobre o nosso planeta. O ciclo da XXXXXX tem início com a radiação solar que incide sobre a Terra. O calor provoca a evaporação da XXXXXX dos oceanos, dos rios e dos lagos. Depois de evaporar, a XXXXXX, em forma de vapor, é transportada pelas massas de ar para as regiões mais altas da atmosfera. Lá em cima, ao ser submetido a baixas temperaturas, o vapor se condensa e se liquefaz. É assim que surgem as nuvens. Quando a nuvem fica carregada de pequenas gotas, estas se reúnem formando gotas maiores que se tornam pesadas e caem sobre a superfície terrestre.

Apesar de a palavra estar omitida, isso não nos impede de conseguirmos ler o texto e, mais ainda, conseguimos “adivinhar” qual é a entidade que está faltando. Como isso é possível? Qual é a mágica que permite conseguirmos adivinhar a palavra e a entidade que ela realiza? A resposta já sabemos: é porque a entidade cria relações com outras entidades do texto. Assim, o significado que é criado para essa entidade é resultado desse conjunto de relações. Com isso, no Texto 4, sabemos que a entidade omitida é a ‘água’ porque está relacionada a outras entidades presentes no texto.

É nesse sentido que as entidades e suas relações são importantes para entendermos o que é a realidade, pois se as relações entre as entidades mudam, então o assunto do texto também muda. E se o assunto do texto muda, estamos lidando de uma realidade diferente. Dessa forma, se compararmos o Texto 3 com o Texto 4, estamos tratando de duas ‘águas’ distintas:

Texto 3: água relacionada com molécula, átomo, hidrogênio, oxigênio, elétron, região, moléculas orgânicas, solvente.

Texto 4: água relacionada com ciclo, planeta, sol, evaporação, oceanos, rios, lagos, vapor, nuvem, carregada, gotas.


Relacionando entidades em textos diferentes


Como vimos até agora, as entidades ganham significado porque se relacionam com outras entidades no texto. Porém, é bastante comum que as entidades de um texto estejam relacionadas com entidades de outros textos. Esse fenômeno é conhecido pelos estudos de intertextualidade.

A intertextualidade é um mecanismo que faz parte da língua, e pode ser definida como a capacidade de relacionarmos os significados das entidades de um texto ao significado de entidades em outros textos, estabelecendo relações de semelhança, contraste e complementaridade entre elas. Por exemplo, a página da ‘água’ na Wikipédia começa assim:

“Água (fórmula: H2O) é uma substância química cujas moléculas são formadas por dois átomos de hidrogênio e um de oxigênio” (https://pt.wikipedia.org/wiki/Água).

Da mesma forma que fizemos antes, aqui também podemos estabelecer uma relação entre as entidades: água, substância química, moléculas, átomos, hidrogênio, oxigênio. Se compararmos essas relações entre entidades com a que fizemos para o Texto 3, percebemos que são semelhantes. Com isso, podemos estabelecer relações entre a página da Wikipédia e o Texto 3.

Figura 5 – Intertextualidade entre Texto 3 e página da Wikipédia.

E, dessa mesma forma, seguimos relacionando muitos e muitos textos por meio desse mesmo processo de intertextualidade.

Quando estudamos algum assunto ou matéria para uma prova, e lemos fontes diferentes, estamos procurando relações intertextuais das entidades que constroem um significado mais amplo e detalhado. Fazemos isso esperando que o nosso estudo seja mais produtivo. Da mesma forma, quando escrevemos um texto, e usamos outros textos de base, estamos o tempo todo estabelecendo relações intertextuais entre as entidades dos textos de base com as do nosso texto.

Um ponto muito interessante que merece destaque é que os textos nem sequer precisam estar na mesma língua; ou seja, podem estar em línguas diferentes. Podemos examinar, por exemplo, as páginas da Wikipédia sobre ‘água’ em línguas diferentes, e observar as relações entre as entidades.

Português: “Água (fórmula: H2O) é uma substância química cujas moléculas são formadas por dois átomos de hidrogênio e um de oxigênio”.  

Espanhol: Agua (del latín aqua) es una sustancia cuya molécula está compuesta por 2 átomos de hidrógeno y uno de oxígeno (H2O) unidos por un enlace covalente.  

Francês: L’eau est une substance chimique constituée de molécules H2O.  

Inglês: Water chemical formula, H2O, indicates that each of its molecules contains one oxygen and two hydrogen atoms, connected by covalent bonds.  

Alemão: Wasser (lateinisch Aqua) ist insbesondere die chemische Verbindung H2O, bestehend aus den Elementen Sauerstoff (O) und Wasserstoff (H).

Quadro 1 – Intertextualidade e multi-linguismo entre entidades

portuguêsespanholfrancêsinglêsalemão
águaaguaeauwaterwasser
H2OH2OH2OH2OH2O
substância químicasustanciasubstance chimique  
dois átomosátomos two  atoms 
hidrogêniohidrógeno hydrogenWasserstoff (H)
oxigêniooxígeno  oxygenSauerstoff (O)
 enlace covalente covalent bondsVerbindung
 del latín aqua  lateinisch Aqua

Assim, conseguimos observar que a intertextualidade também acontece entre línguas diferentes. Inclusive, esse fenômeno permite que exista tradução.

A tradução é uma produção de textos que relaciona, intertextualmente, um texto fonte de uma língua com o texto alvo de outra língua. Quando uma pessoa traduz – ou seja, quando produz um texto na língua alvo tendo como guia o texto na língua fonte – ela busca, o tempo todo, pelas relações entre entidades no texto fonte e procura estabelecer relações semelhantes no texto alvo. Essa relação ganha o nome de equivalência em tradução. Esse é um dos motivos pelos quais às vezes a tradução parece ser difícil, e outras vezes até mesmo impossível; nem sempre as relações em uma língua podem ser feitas em outra língua.


Relacionando entidades em sistemas semióticos diferentes


Além da intertextualidade, as relações entre as entidades podem ser feitas até mesmo entre sistemas semióticos diferentes.

Sistema semiótico é o sistema que é capaz de produzir significado. A língua humana é o melhor exemplo de um sistema semiótico; ela utiliza sons, gestos e expressões faciais para falar sobre o mundo à nossa volta, sobre as nossas experiências, sobre as atividades humanas e assim por diante.

Além da língua, outros sistemas semióticos utilizam imagens, gestos, cores, formas, sons e símbolos. A matemática, por exemplo, é um sistema semiótico que utiliza símbolos e números para produzir significados sobre formas, relações, probabilidades e fenômenos da natureza. Já a música é um sistema semiótico que utiliza sons para produzir significados para nossas emoções, sentimentos e apreciação estética. Vestimentas, maquiagem e penteado produzem significados sobre os grupos aos quais nos afiliamos, relativos a, por exemplo, classe social, identidade de gênero, movimento cultural, status social, profissão, etc.

Os sistemas semióticos podem ser complexos como a língua, mas também muito simples, como o semáforo de trânsito, que usa três cores e produz somente os significados de siga, atenção e pare.

Assim como uma entidade e suas relações pode ser representada em textos diferentes, e em línguas diferentes, também pode, da mesma maneira, ser representada em sistemas semióticos diferentes. Além disso, consegue estabelecer relações em mais de um sistema semiótico. Vejamos o exemplo na Figura 6.

Figura 6 – Ciclo da água: entidades e relações entre sistemas semióticos diferentes. Neste caso, entre a linguagem verbal e a linguagem visual das imagens (FONTE: https://www.facebook.com/depmeteorologiaufrj/photos/a.263892405401685/319277196529872/?type=3&theater).

Na Figura 6, temos um diagrama representando o ciclo da água, semelhantemente ao Texto 4. A diferença é que aqui as entidades estabelecem relação tanto com a linguagem verbal, quanto com a linguagem visual. Então, a entidade ‘água’ está relacionada a entidades como ‘chuva’ e ‘substância extremamente importante para os seres vivos’ no texto verbal, mas também com as imagens do rio, do lago e do mar.

Na Figura 7, temos outro exemplo, mas aqui da Matemática.

Figura 7 – Fatoração: a linguagem verbal e a linguagem simbólica da matemática se relacionam (FONTE: https://pt.wikipedia.org/wiki/Equação_quadrática).

A partir da Figura 7, podemos identificar entidades multi-semióticas, tais como: ‘termo x – r’, ‘polinômio ax2 + bx + c’, e ‘duas raízes iguais b2 = 4ac’.


Relacionando entidades com o mundo real


Até este ponto, conseguimos observar que as entidades começam como elementos de um texto específico, construindo significados para esse texto em particular. Porém, observamos também que faz parte da própria natureza das entidades se relacionarem a outras entidades em textos diferentes (i.e., intertextualidade). E, mais além, que a intertextualidade pode acontecer até mesmo entre línguas diferentes (ex.: multi-linguismo). Em seguida, vimos que as relações entre entidades extrapolam até mesmo a língua verbal, sendo estabelecidas entre sistemas semióticos diferentes, chegando ao ponto de uma entidade ser composta por partes de sistemas semióticos diferentes. Mas, esse processo não termina aí.

Além dos sistemas semióticos, as entidades podem se relacionar com elementos do “mundo real” – isto é, do mundo que nós entendemos como sendo feito de “matéria física”. Na verdade, a associação entre uma entidade e algum elemento do mundo real é muitíssimo comum, e talvez seja o primeiro tipo de associação simbólica que nós, seres humanos, fazemos quando ainda somos bebês e entramos no processo de socialização. Quando um bebê aponta para um objeto do mundo real e fala o nome do objeto, o que o bebê está fazendo é construindo o significado de uma entidade. Por exemplo, se apontar para um cachorro e falar “au-au”, está construindo o animal “de carne e osso” como um significado. Para isso, utiliza três sistemas semióticos,

(i) a linguagem verbal, com o substantivo “au-au”;

(ii) a linguagem gestual, apontando com o dedo indicador;

(iii) a “imagem 3D” do objeto do mundo real.

Usamos aqui a expressão “imagem 3D” entre aspas, para chamar a atenção ao seguinte ponto: nesse caso específico, o “cachorro” não quer dizer mais um objeto do mundo real, mas sim, um elemento de significado na relação com a linguagem verbal e o gesto. Em outras palavras, quando estamos produzindo um texto multi-semiótico, não existe diferença entre usar linguagem verbal, ou gestual, ou visual, ou matemática, ou musical, ou de vestuário, ou os objetos “reais” que estão ao nosso redor… tanto faz.

Figura 8 – Relações entre entidades do significado de ‘cachorro’ em sistemas semióticos diferentes.

O que importa, na verdade, é se conseguimos criar os significados e construir as entidades que precisamos em um determinado momento, para uma determinada atividade. Nesse sentido, o que acaba acontecendo com o “mundo real” é que ele também se torna um sistema semiótico.

Assim como o som é a forma material da linguagem verbal oral, e o movimento dos braços e mãos é a forma material da linguagem verbal sinalizada, os objetos do mundo real se tornam a forma material da “linguagem do mundo real”.

Quadro 2 – Expressão material em vários sistemas semióticos

sistema semióticoexpressão
linguagem verbal sinalizadamovimentos de braços, mão, tronco e rosto
linguagem verbal oralsons, gestos e expressão facial
linguagem gestualgestos de mãos, braços e sonoros
matemáticasímbolos matemáticos (“desenhados no papel”)
músicasons, símbolos musicais (“desenhados na partitura”)
vestuário, maquiagem e penteadotecidos, pinturas, cabelo
expressão facialmovimentos do rosto
linguagem visualimagens, desenhos, ícones, cores
sinalização de trânsitoluzes, placas, pintura no chão
“linguagem do mundo real”objetos do mundo real

Passemos agora ao exame do Texto 5, no qual esse processo fica ainda mais evidente. Esse texto é uma conversa entre três pessoas que estão na cozinha preparando um alimento. Vale a pena prestar atenção no texto e ver se conseguimos descobrir qual é a comida que está sendo preparada. As pessoas são apresentadas no texto como F1, F2 e F3. Como o texto é falado, e a fala foi transcrita, podemos ficar um pouco perdidas ao ler o texto, mas isso é normal.

TEXTO 5 – Relação entre entidades e o “mundo real”

F1: Põe aqui pra mim, F3.
F3: Ah, tá. Eu queria virar ele em pé, né?
F1: Você achou que era em pé, F3? Não, não é em pé não.
F1: Pega uma coisa, F2.
F1: Agora vamos tirar, ó.
F2: Você falou que queria ver, que você não coisa lá.
F1: Isso.
F2: Esse faz quente, né?
F1: Hã?
F2: Quente?
F1: Ah! Me dá uma faca aí, F2.
F3: Toma. Vai quebrando o galho com essa aqui, que eu vou achar uma boa aqui.
F1: Pega uma faca aí. E vamos fazendo assim. Por que é que ele fez isso da outra vez, não fez?
F2: E você viu a quantidade de manteiga, né?
F1: Foi. Não, não é a manteiga não.
F3: Será que ele não ficou muito pesado não?
F1: Pega outra lá pra F2. Pega outra pra você lá, F2. Não, F3. Não é nada disso não.
F3: Ah, aqui foi bem aí.
F1: Deixa eu tirar aqui. Deixa eu virar ele aqui, F2. Você raspa aqui com a faca.
F3: Cuidado com a mão. A F2 tá tomando café. Ô, F2 pode tomar café, deixa que eu —
F1:  É, F2. Me da uma colher aí, F3. Isso.

Como é possível constatar, a comida não é mencionada como língua verbal nem uma vez sequer. No entanto, ela é um elemento crucial do Texto 5. Ou seja, existe uma parte do texto que não é feita de palavras, mas sim de objetos físicos. Da mesma maneira que nas Figuras 5 e 6 os textos foram compostos de linguagem verbal, imagens e símbolos matemáticos, o Texto 5 é composto de linguagem verbal e objetos. Isso ilustra muito bem como que as entidades são construídas de forma multi-semiótica, incluindo sua expressão como objeto do mundo real.

Em uma cena de Matrix, no refeitório do Nebuchadnezzar, Mouse conversa com Switch sobre a comida, e faz a seguinte observação:

Mouse: You know what it really reminds me of? Cream of Wheat. Did you ever eat Cream of Wheat?

Switch: No, but technically neither did you.

Mouse: Exactly my point, because you have to wonder, how do the machines know what Cream of Wheat really tasted like? Maybe they got it wrong, maybe what I think Cream of Wheat tasted like actually tasted like oatmeal, or tuna fish.

Mouse: Você sabe o que essa comida me lembra? De mingau de trigo. Você já comeu mingau de trigo?

Switch: Não. Mas tecnicamente, você também não.

Mouse: Exatamente era aonde eu queria chegar. Você já se perguntou como que as máquinas fizeram para saber o gosto de mingau de trigo? E se elas erraram, e o mingau de trigo tiver gosto de mingau de aveia, ou então de peixe?

Esse é um exemplo interessante para podermos pensar como as coisas do mundo real, aqui no caso o mingau, tornam-se entidades e ganham significado pelas suas relações com outras entidades. No final das contas, o mingau de trigo pode ter gosto de aveia, ou de peixe, mas isso é irrelevante, pois seu significado é de “ser mingau de trigo”, então é mingau de trigo, e pronto.

À primeira vista, constatações como a do Texto 5 ou do mingau de trigo, podem parecer muito estranhas. Isso porque elas realmente nos fazem questionar o que de fato é o mundo real…

(Matrix, parabéns. Você conseguiu).

Mas, se pararmos para pensar sobre isso, não é nada estranho que o mundo real seja também “semiotizado”, e se transforme completamente em significado. Afinal, é justamente esse o processo que aconteceu com cada um de nós, que passamos de ‘filhotes do animal Homo sapiens’, para ‘pessoas socializadas, falantes, membros de uma cultura’.

Assim como aconteceu conosco, acontece também com os objetos, que passam de “coisas feitas de matéria”, para ‘significados socializados, significados de uma língua e uma cultura’. Na verdade, isso acontece com todos os objetos, seres vivos, fenômenos da natureza… enfim, com tudo que faz parte do mundo humano.


Vai um linguista aí?


Desde o início do artigo, estamos apresentando aspectos do mundo real da forma como ele é visto pelas Ciências da Linguagem. De maneira geral, podemos dizer que o mundo humano é composto de significados, incluindo o mundo real. Ainda, esses significados são, em grande medida, manifestados na forma das entidades.

Os questionamentos em Matrix sobre “o que é real”, ou “o que nós percebemos como sendo real”, ou ainda “o que é ilusório, simulação, ou apenas uma forma de controle” podem ser todos percebidos como significados criados pela língua que falamos, na cultura em que fomos socializados.

Talvez a maior contribuição que as Ciências da Linguagem podem trazer para essa discussão seja a seguinte: não existe pílula vermelha. Naturalmente, uma afirmação como essa requer explicações mais detalhadas. Então, vamos a elas.

a) Construindo o mundo real a partir das entidades

Vamos começar esta seção considerando um objeto que seja claramente parte do mundo real, portanto, que seja físico, feito de matéria. Por exemplo, vamos pensar em uma casa. A casa é feita com tijolo, pedra, cimento, madeira, ferro, etc. Por isso, ela é matéria física (átomos e moléculas) e nós podemos tocar concretamente com as mãos, enxergar com os olhos e assim por diante. A conclusão, que parece óbvia, é que a casa faz parte do mundo real; portanto ela não é imaginária, nem ilusória, nem virtual, certo?

Bem, vamos pensar um pouco mais sobre como uma casa surge no mundo. Em primeiro lugar, não existe casa na natureza; isto é, as casas não aparecem por geração espontânea no meio do nada. Em segundo lugar, somente a cultura dos seres humanos que determina morar em casas. O que esses fatos nos dizem?

Se a casa não existe na natureza, ela tem que ser construída. E, para ser construída, deve ser, em alguma medida, planejada. O planejamento da casa envolve questões como: o desenho da planta, o cálculo das dimensões e projetos hidráulico e elétrico, a compra de materiais, o custo da mão de obra, a gestão das pessoas que trabalham na obra, as edificações e a execução da obra, a colocação dos acabamentos e decoração. Somente depois de todo esse trabalho é que uma casa surge no mundo.

Acontece que essas etapas que antecedem a existência da casa são todas semióticas, pois envolvem símbolos, língua, imagens, gestos e assim por diante. Com isso, um tijolo, antes de existir na forma material de átomos e moléculas, foi apenas uma ideia, um conceito, uma palavra. Da mesma forma que o tijolo, também a porta, as janelas, o telhado, etc., antes de serem parte da casa, foram entidades em muitos textos multi-semióticos.

Quadro 3 – Alguns sistemas semióticos na construção de uma casa

Vejamos o Texto 6 a seguir, no qual uma pessoa explica um pouco de como é o planejamento para se construir uma casa.

TEXTO 6 – Planejando a construção de uma casa

Essa casa aqui não vai ter nenhum tipo de construção pesada. Aqui tem a base e a gente faz esse cinturão. A gente vai levantar e aí na altura das janelas e das portas a gente vai fazer outro cinturão na casa todinha, como se fosse a verga. Vai ser como se fosse a verga, na verdade é a verga, só que a gente vai fazer um cinturão em toda ela, não é só nas portas e nas janelas, mas eu vou travar ela todinha, com… novamente, né, com esse tipo de material aqui.

Em seguida, a partir dos textos de planejamento, feitos de língua verbal, são produzidos outros textos. Por exemplo, existe um texto descritivo, composto de linguagem verbal, mas principalmente de imagens, que é a planta da casa. Por fim, após a execução da obra, temos a casa pronta.

FIGURA 9 – A casa multi-semiótica. Primeiro, a casa é concebida como língua verbal nas conversas que planejam a construção da casa, depois como imagem na planta e, por fim, como objeto – a casa pronta.

b) A linguagem que criou Matrix e o todo o resto do mundo

Quando usamos a palavra ‘casa’ para nomear um objeto do mundo, dá a impressão que o objeto vem antes da língua. Ou seja, as coisas existem e, somente um tempo depois, a língua existe para dar nome para as coisas. Contudo, como vimos no exemplo da casa, na verdade acontece o contrário. Primeiro existe a entidade ‘casa’ em um texto verbal, muitos meses antes mesmo de a casa existir: “Essa casa aqui não vai ter nenhum tipo de construção pesada” (Texto 6). Somente depois é que surge o objeto material, para expressar a entidade que havia surgido no texto verbal.

A partir deste ponto de vista, todo o mundo físico em que nós humanos habitamos sofre este mesmo processo. Se você que lê este artigo está, por exemplo, acessando a internet, vendo o texto em uma tela, sentada em uma cadeira, dento de uma casa, em uma cidade… você não poderia estar mais longe da natureza, do mundo real feito de matéria. Se a tela do seu celular/computador é feita de vidro, a sua cadeira de madeira, e a sua casa de tijolo, esses são fatos irrelevantes. O que importa é que objetos como celular, cadeira ou casa são a consequência material do nosso mundo semiótico. Em outras palavras, o valor desses objetos não está no fato de que são feitos de vidro ou madeira, mas está no que significam para nós. Afinal, objetos como celular, cadeira ou casa só existem por conta da nossa vida social e da forma como nós interpretamos o mundo de acordo com a nossa cultura.

Figura 10 – A cidade é uma manifestação física de uma gigantesca rede de relações simbólicas. A cidade não é matéria, concreto, asfalto, ou metal. Ela é, na verdade, um complexo de relações sociais entre as pessoas (trabalho, comércio, política, arte, leis, educação, logística, valores, conhecimento, segurança, relações afetivas, e assim por diante), onde o mundo natural é eliminado e substituído por um mundo simbólico expresso por objetos materiais para acomodar a vida social humana.

Por isso, quando olhamos para um objeto material, podemos fazer o exercício de “ler” esse objeto. Ler os objetos significa tentar imaginar qual é o texto, ou os textos, que deram origem a esse objeto, e qual o significado que esse objeto possui no mundo, em relação aos significados dos outros objetos. Ao fazer esse exercício, conseguimos compreender melhor como o nosso mundo humano foi criado e, mais importante, como esse mundo funciona. Ao “lermos” o mundo, temos maior capacidade de também intervir nesse mundo e, quem sabe, também sermos capazes de “escrever” uma parte dele.

No final de Matrix, [SPOILER! SPOILER!] Neo é baleado pelo Agente Smith e morre. Com a ajuda fundamental de Trinity, é nesse momento que Neo “acorda” da morte, finalmente entendendo que é o Escolhido. Nessa cena, quando olha para os Agentes, e o corredor do hotel onde está, Neo não enxerga mais as paredes, o chão ou as pessoas. Tudo o que ele vê são os códigos de programação da Matrix. Essa cena simboliza a ideia de que Neo deixa de acreditar que o mundo é feito de coisas, e portanto passa a “ler” a linguagem do mundo; o que o mundo significa como textos e símbolos.

No roteiro do filme, está escrito:

Neo looks out, now able to see through the curtain of the Matrix. For a moment, the walls, the floor, even the Agents become a rushing stream of code.

Neo olha para o final do corredor, agora é capaz de ver através do véu da Matrix. Por um instante, as paredes, o chão e até os Agentes se tornam um fluxo rápido de código.

Neo consegue ler a Matrix tão bem que antecipa com muita tranquilidade o que vai acontecer. Consegue prever, por exemplo, os movimentos do Agente Smith e, por fim, consegue intervir nesse mundo, parando as balas de revólver, ou entrando dentro do Agente e reescrevendo seu código.

Nós também vivemos em um mundo de códigos e, a partir de agora, tomamos também a pílula do real. Por isso, para nós o mundo real inteiro é feito de códigos também. E não tem mais volta. Agora, também tomamos a pílula do real! Quando afirmamos que a pílula vermelha não existe, é disso que estamos falando. Sair do ‘mundo virtual da Matrix’ e ir para o ‘mundo real’ quando tomamos a pílula vermelha não faz sentido, pois o mundo real também é virtual. Ele pode não ser feito de pulsos elétricos ou zeros e uns – como é o caso do mundo dos computadores –, mas é um mundo totalmente criado pela imaginação e significados humanos, por meio da língua.


Referências


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