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Pensando a relação entre língua e identidade a partir da linguagem não-binária

Design sem nome

A língua é um sistema semiótico-social. Ela já existe antes de qualquer um de nós viermos ao mundo. Aquilo que falamos não é apenas o produto de nossos pensamentos, pois a língua está por trás dos significados que organizam o mundo e as relações sociais.

A língua realiza a estrutura e o sistema social e é através dela que um indivíduo assume um lugar na sociedade. É porque o intercâmbio linguístico com o grupo que determina o status do indivíduo e o molda como pessoa. Ou seja, aquilo que eu falo realiza, ao mesmo tempo, o que eu sou e o meio em que vivo!

Também podemos pensar sobre isso levando em conta a “oposição”. Nós conhecemos esses significados pela oposição que eles têm de uns com os outros. Eu sei que é “a noite” porque não é “o dia”, da mesma forma que eu sei quem eu sou pela minha diferença com as outras pessoas.

Esse processo, que é linguístico, determina a pessoa que eu sou – minha identidade. Apesar de cada um se identificar de maneira autônoma, a composição da identidade depende de fatores sociais. Além disso, nossa identidade não é fixa, pois estamos sempre em processo de “identificação”; preenchendo nosso interior com mundo exterior a todo momento. Em outras palavras, mudamos constantemente conforme imaginamos sermos vistos pelo outro.

Figura 1 – É através da língua que o ‘ser humano’ se torna parte da ‘sociedade’. E a ‘pessoa’, consequentemente, se constitui da ‘sociedade’ em virtude de sua participação no grupo; ela absorve a cultura através da língua. Então, o indivíduo deixa de ser simplesmente um espécime biológico da humanidade e se torna uma ‘pessoa’.

Mas nossa identidade não é apenas a língua – somos também nossas roupas, o corte de cabelo, a expressão corporal… tudo isso isso é a expressão da identidade. É o que nos define ao mesmo tempo que realiza um significado para os outros sobre quem somos. Tudo isso é semiótico.

Nós moldamos todas essas características de acordo com o que consideramos apropriado, sempre  em função do meio social. E podemos também adaptar a língua à nossa realidade ou à realidade do grupo social ao qual pertencemos, é assim que ocorrem as variações linguísticas.

Levando em conta o passado, percebemos que nossa realidade – e por consequência a língua – têm significados que mudaram radicalmente de um tempo histórico para outro em decorrência de processos sociais e de mudanças na maneira de enxergar a realidade. Vejamos, por exemplo, o significado de “curiosidade”.

Santo Agostinho foi um teólogo e filósofo medieval cujas obras foram muito influentes no desenvolvimento do cristianismo e filosofia ocidental. Agostinho incluiu curiositas em seu catálogo de vícios, identificando-a como uma das três formas de luxúria (concupiscentia) que são o início de todo pecado (luxúria da carne, luxúria dos olhos e ambição do mundo) – A mente excessivamente curiosa apresenta uma “luxúria de descobrir e saber”. Hoje pensamos na curiosidade como algo necessário para o avanço do conhecimento e da descoberta científica.

Figura 2 – Essas mudanças de significado também incluem mudanças na estética (que também é um significado), ela está no mesmo “pacote semiótico”, junto com a língua. Perceba o contraste entre conceito de masculinidade moderno do senso comum e de um retrato oficial do rei Luís XIV. Em seu tempo Luís era um paradigma europeu de masculinidade e virilidade!

Como vê, a mudança na língua é um processo que está ligado às mudanças em uma sociedade – na forma como seus indivíduos enxergam o mundo e a si próprios. Aqui abordaremos a criação de sistemas linguísticos por um grupo social que não se identifica com o padrão de gênero binário homem/mulher.

A linguagem não-binária e seus sistemas são adaptações na língua em função de novos significados, de novas concepções de identidade. Primeiro, vamos entender o que ela é e, em seguida, discutiremos como pode ser importante a adoção de políticas públicas para apoiar seu uso na sociedade.


O ‘cis’tema em ‘trans’formação


Linguagem Não-Binária ou Neutra é um conjunto de formas linguísticas que tem por objetivo não atribuir um gênero gramatical para o gênero social das pessoas. Ela não foi criada por uma pessoa só, mas por várias pessoas de gênero não-binário ao longo do tempo e ela está sempre em transformação.

Os gêneros gramaticais da nossa língua não estão adequados às pessoas que não se identificam com a concepção social de gênero binário (homem/mulher). Temos uma língua que, além de não ter gênero gramatical neutro, faz distinção de gênero gramatical tanto para objetos (a caneta, o papel…) como as palavras que nomeiam as pessoas (o professor, a engenheira…).

Por exemplo, se um palestrante pegar o microfone e ele disser “boa noite a todos”, ele está se referindo a todos os presentes, sejam eles homens ou mulheres, segundo os costumes. O mesmo acontece se disser “boa noite a todos e a todas”. Esta seria uma característica binarista e até sexista da nossa língua, quando a desinência de masculino põe todo mundo no mesmo barco, inclusive as pessoas que não se identificam assim. Por isso que muitas vezes surgem as seguintes perguntas:

  • Como tratar com as pessoas que não se identificam como cisgêneras?
  • Como devemos usar frases que vão além de um padrão comum e que as faça se sentirem incluídas?
  • Como fazer para um sistema gramatical, que é binário, representar línguisticamente as palavras que nomeiam as pessoa de gênero não-binário?

A fim de podermos nos dirigir melhor a alguém que se reconhece como sendo não-binário, foi sugerida uma modificação na morfologia de certas palavras, especificamente nas desinências de gênero de pronomes como ele/ela, dele/dela e de gêneros de profissão, como psicóloga/psicólogo; secretária/secretário; etc.

Esses sistemas são usado apenas entre pessoas, ou seja, pessoas se referindo a pessoas; o sistema não é válido para relações com objetos ou com animais. O sistema  para relações pessoa-objeto e pessoa-animal permanece do modo como conhecemos. Por exemplo, a frase “essa é a minha cadeira” não muda.

Da mesma forma, nem todas as palavras que fazem referência a gênero binário apresentam as desinências ‘a’ para feminino e ‘o’ para masculino no final, apesar de serem a minoria. Por exemplo, em ‘um mulherão’, temos uma combinação que faz referência ao gênero feminino social mas que utiliza uma flexão comum ao masculino gramatical (se o padrão feminino de desinência gramatical fosse invariável, teria que ser ‘uma mulherona’).

Um exemplo de modificação ortográfica que já ocorre com frequência é o uso de “x” ou “@” no lugar de terminações binárias “a” ou “o”. Assim, palavras como “menino” e “aluno” ficariam, por exemplo, “meninx” ou “alun@”. Mas essa modificação só funciona na língua escrita e outros sistemas seriam necessários e, diante disso, seu uso não é recomendável.

Uma critica recorrente é a de que aplicativos leitores de texto (usados por pessoas com deficiência visual, por exemplo) teriam dificuldade de lidar com essas mudanças. Quem sabe isso não seria algo a ser resolvido com uma simples atualização da linguagem do software? Assim, as pessoas com deficiência podem aprender também!

Imagem do manual de calouros da USP, de 2017, com a escrita da palavra ‘vindxs’ sem a desinência de gênero.

Foram criados, então, não apenas um sistema, mas vários sistemas como alternativa morfológica aos binarismos da língua, estando o falante à vontade para escolher qual achar melhor. Vou exemplificar apenas dois deles, mas deixarei o link para uma página que contém uma lista mais completa de sistemas.

Sistema Ile
Caracteriza-se pela utilização dos pronomes: ile, iles, dile, diles, nile, niles, aquile e aquiles.
Eles são amigos. —-> Iles são amigues. Os olhos dele são castanhos. —-> Os olhos dile são castanhos. Você confia nela? —-> Você confia nile? Aquela menina é a Ariel? —-> Aquile menine é Ariel?
Sistema Ilu
Pronomes: ilu, ilus, dilu, dilus, nilu, nilus, aquel e aquels. Sistema Ilu surgiu a partir do pronome neutro do latim, que é illud.
Eles são amigos. —-> Ilus são amigues. Os olhos dele são castanhos. —-> Os olhos dilu são castanhos.Você confia nela? —-> Você confia nilu?Aquela menina é a Ariel? —-> Aquel menine é Ariel?

As pessoas podem achar que a linguagem neutra só pode ser usada por quem é não-binário, quando, na verdade, essa linguagem pode ser usada por qualquer pessoa independentemente de seu gênero. Ela é um conjunto de boas práticas para se comunicar, você pode usá-la se quiser (ou não). Ela nos convida a fugir do senso comum na linguagem e é uma ferramenta para promover a conscientização em prol da diversidade.

E mundo afora podemos perceber a implementação da linguagem não-binária em espaços públicos e instituições:

Em 2015, foi anunciado que o pronome neutro hen seria incluído no Svenska Akademiens ordlista, o glossário oficial da Academia Sueca. Em abril de 2015, o pronome neutro de gênero hen e outras 13.000 palavras novas foram adicionadas em um novo dicionário oficial da língua sueca (link).

Em 2015, o dicionário de Oxford anunciou hoje que o título Mx (uma forma de gênero neutro de Sr., Sra., Sra. Ou Srta.) Foi introduzido em seu léxico oficial. Sua adição tem como objetivo refletir “as conversas mais sensatas de hoje sobre identidade de gênero”. A definição diz: “Mx (substantivo): título utilizado antes do sobrenome ou nome completo de uma pessoa por quem deseja evitar a especificação de seu gênero ou por quem prefere não se identificar como homem ou mulher (link)”.

Em 2017, a Alemanha reconheceu as pessoas não-binarias como sendo uma terceira opção sexual para todes (link).

Em 2017, o metrô de Londres substituiu os tradicionais letreiros: “Bom dia, senhoras e senhores” por “Bom dia a todos”, de forma a refletir a grande diversidade de Londres (link).

Nos Estados Unidos, a Escola de Artes e Ciências da Universidade de Harvard autorizam o estudante a se identificar como homem, mulher ou transgênero nos registros acadêmicos.

Em 2015, A American Dialect Society escolheu o pronome “they” como a Word of the decade (palavra da década) para homenagear o modo como ela se tornou um pronome para muitas pessoas que se identificam como não binárias (link).

Em 2020, o governo de Portugal criou novas regras para militares usarem linguagem não discriminatória. A diretiva do Ministério da Defesa foi enviada ao Estado-Maior-General das Forças Armadas e aos três ramos militares. Pretende uma política de comunicação oral e escrita “inclusiva em todos os documentos oficiais” (link).


O papel da educação em nosso tempo


Muitos andam se perguntando: será que a educação deveria ter um papel efetivo na aplicação da linguagem não-binária?

Pessoas de gênero não-binário fazem parte da nossa realidade, da atual conjuntura da sociedade. Sua visão de mundo e práticas linguísticas podem ser consideradas no planejamento da educação a partir da lei que estabelece as diretrizes da educação em nosso país, que inclui objetivos muito importantes:

LEI Nº 9.394, DE 20 DE DEZEMBRO DE 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional – Título II: dos princípios e fins da educação nacional: 

III – pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas 

IV – respeito à liberdade e apreço à tolerância;Plano Nacional de Cultura, em conformidade com o 3º do art. 215 da Constituição Federal, é regido pelos seguintes princípios e objetivos:

  • Liberdade de expressão, criação e fruição; 
  • Estimular o pensamento crítico e reflexivo em torno dos valores simbólicos;

De acordo com estudos da sociologia sobre educação, a escola reproduz as desigualdades presentes na sociedade. É provável que os estudantes que não tem direito de se expressar linguisticamente na escola tenham origem em grupos sociais que não recebem estes direitos na sociedade.  Portanto, a fim de que possamos eliminar as desigualdades na sociedade, é importante que as eliminemos sua reprodução, que ocorre nas escolas.

Os ideais de democracia sempre incluíram liberdade de expressão e de crença, autonomia pessoal e direitos individuais. Mas, à medida que novas formas de ser vão surgindo, problemas de aceitação dessas novas ideias sempre vêm  juntos e tanta rejeição da ideia pode indicar o quanto não estamos sendo educados para a tolerância e para a convivência.

Há poucos anos, sequer discutíamos o que era a homofobia, machismo, gordofobia ou a realidade do racismo e suas implicações. Diziam que era frescura, discussão passageira, e muitos ainda acham isso. 

Mas a partir do momento que detectamos os problemas e usamos a língua para falar sobre eles (apontá-los), eles passam a “existir” para a sociedade; eles sempre estiveram ali, mas agora nós os “materializamos” através da própria língua. Foram “apreendidos” pela língua e deixaram de ser invisíveis; não só as questões sociais, mas também as pessoas envolvidas nessas questões sociais. 

É no campo da linguagem que se faz a sociedade ser o que ela é; ver o que importa ou não importa, e mais do que isso, é com a linguagem que se pode mudar a sociedade de dentro pra fora, da margem para o centro, trazendo questões como essa para o debate público.


Recomendações:


https://mairareis.com/diversidade-de-genero/

Referências bibliográficas:


CASTRO, Gillianno José Mazzetto de; COSTA, Marcio Luis. A Invenção do Sujeito. Psicol. cienc. prof.,  Brasília ,  v. 38, n. 2, p. 391-402,  June  2018 .   Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-98932018000200391&lng=en&nrm=iso>. access on  19  Nov.  2020. 

EAMON, William. The Disease Called Curiosity. InWillian Earmon. EUA, 2 ago. 2010. Disponível em: https://williameamon.com/?p=185. Acesso em: 17 nov. 2020.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós – modernidade/ tradução Tomaz
Tadeu da Silva, Guacira Lopes Louro-11. Ed.- Rio de janeiro: DP&A, 2006.

HALLIDAY, M.A.K. Language as Social Semiotic: The Social Interpretation of Language and Meaning. London: Edward Arnold, 1978. 256 p

HARARI, Yuval Noah. Sapiens: Uma breve história da humanidade . Porto Alegre: L&PM Editores S. A., 2018.

LAU, Héliton. Pensando fora do cistema: uma reflexão sobre a linguagem não-binária. UNIletras, [s. l.], ano 2019, n. 2, ed. v. 41, 15 abr. 2020.

LOBO, Cari Rez; GAIGAIA, V. Linguagem não-binária ou neutra. In: LOBO, Cari Rez; GAIGAIA, V. Wiki identidades. Brasil, 6 set. 2017. Disponível em: https://identidades.wikia.org/pt-br/wiki/Linguagem_n%C3%A3o-bin%C3%A1ria_ou_neutra. Acesso em: 18 nov. 2020.

REIS, Maira. A Gramática da Linguagem Neutra de Gênero para Destruir o Binarismo na Comunicação. InComunicação Reversa. Brasil, 15 set. 2020. Disponível em: https://mairareis.com/gramatica-da-linguagem-neutra-de-genero/. Acesso em: 17 nov. 2020.

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