Conversamos com o Prof. Adail Sebastião Rodrigues Júnior, do Departamento de Letras da UFOP, sendo a primeira de uma série de entrevistas com professores da área da Linguística e Linguagens.
VULA: O que estuda a linguística antropológica?
Adail: A linguística antropológica estuda a língua em contexto e cultura. Se a gente pensar, por exemplo, do ponto de vista da antropologia, a antropologia era vista como uma ciência das humanidades que investigava povos muito distantes da gente. Hoje em dia, a antropologia ampliou muito sua área de atuação e temos pesquisas da topologia na área urbana em comunidade seja na periferia, seja em determinadas áreas religiosas de diferentes tipos de religião com suas diferentes matrizes. A linguística antropológica parte dessa perspectiva da antropologia de estar em contexto em culturas distintas da nossa cultura, ou não, para investigar fenômenos linguísticos que se dão ali no momento da coleta de dados; e aí entra um conjunto enorme de variáveis que vai influenciar essa coleta de dados. Então, basicamente, a linguística antropológica investiga o uso da língua ou da linguagem em contextos e culturas específicas, partindo de procedimentos metodológicos e aparatos na antropologia.
VULA: O que são as gramáticas culturais?
Adail: “Gramática Cultural” é um conceito pra gente “traduzir” o que determinada comunidade constitui como cultura e como a linguagem em uso estabelece esses “padrões culturais”. Se a gente pensar em práticas de linguagem, não conseguimos nunca dissociar a língua do contexto da cultura. Então, determinadas comunidades têm sua forma de se colocar no mundo por meio da linguagem. Essas gramáticas culturais vão expressar – ou traduzir – como que aquela comunidade usa determinado uso linguístico para se colocar no mundo, para se expressar, para interagir entre si. As gramáticas culturais são, de fato, esses momentos que vão distinguir cada comunidade e suas determinadas culturas.
VULA: Então a gramática cultural não tem a ver com a estrutura da língua, tem a ver com o uso da língua em determinado contexto cultural?
Adail: Se a gente pensar no ponto da gramática descritiva e não da prescrição, pode haver fenômenos linguísticos atrelados a esse campo de saber da gramática descritiva. Como, por exemplo, o uso de negativas e como isso se dá em determinada cultura e essas negativas expressas na própria língua – como por exemplo “não”. Nesse momento, quem investiga especificamente esse campo, mais atrelado à linguística antropológica propriamente dita, ela tem uma extensão de ênfase, desde aquela que é dada muito mais eminentemente à questão cultural, até aquela arte da língua em si usada para estabelecer essas expressões culturais. E quanto à orientação metodológica do pesquisador ou da pesquisadora parte desse outro extremo, no caso da língua em si, aí ele vai investigar questões linguísticas que, sim, dialogam com as questões gramaticais.
VULA: Baseado nisso, posso resumir que “as duas áreas (linguística antropológica e gramática cultural) conversam e necessitam uma da outra”?
Adail: Essas gramáticas culturais não são um “elemento concreto”, como se fosse uma gramática. São descrições do uso que essas comunidades fazem da linguagem. O conceito de gramática cultural está atrelado a esse uso. Não é que haja uma necessidade um do outro, mas há, sim, uma contribuição relevante de uma área para a outra para que elas dialoguem entre si e, assim, constituam novas discussões para estudos gramaticais – mas sempre na perspectiva da gramática descritiva. Então, se você pensar nessa relação, eu talvez trocaria o uso de “necessitam” e ,sim, “dialogam” uma com a outra.
VULA: O que estuda a estilística e a etno-estilística?
Adail: A estilística é um campo dos estudos da linguagem mais focado na questão do texto escrito. Pode ser usada também no texto oral, mas é muito mais focada no texto escrito. A estilística não tem relação com os estudos literários, mas usa um objeto próprio da literatura que são os textos literários para discutir questões linguísticas inseridas nos textos literários. Por exemplo “quantas vezes esse verbo dicendi (aqueles que utilizamos, no discurso direto, para se referir ao modo como nosso interlocutor se expressa por meio de palavras ou pensamentos) transformou em oração reduzida de gerúndio”, e aí tentamos mapear um possível estilo tradutório. Já a etno estilística é uma abordagem que eu estou tentando resolver, no meu novo projeto de pesquisa, que tenta trazer elementos da estilística, juntar esses elementos com a linguística antropológica para mapear estilos de escrita em narrativas míticas vindas do corpus literário de Ifá – que é um culto, ou, melhor dizendo, prática divinatória dos iorubás em África, de Babalawos. Esse corpus literário de Ifá é um corpus oral. Os nigerianos, até o séc. XIX, eram povos ágrafos, ou seja, não tinham o registro da escrita. E com a vinda dos escravizados ao Brasil, trouxeram toda essa riqueza de oralidade para nosso País, e aqui começaram a se estabelecer/constituir determinadas comunidades religiosas conhecidas hoje como candomblé – os candomblés queto, especificamente na Bahia. Então, minha discussão é: a mudança de tipo textual e dos elementos que vieram desse corpus literário de Ifá para o Brasil e foram transformados em uma narrativa.
VULA: Uma narrativa em língua portuguesa?
Adail: Em língua portuguesa. Então, essa etno-estilística, que eu tento desenvolver nessa minha pesquisa, estou tentando mostrar essas diferenças de tipo textual e os impactos dessas diferenças no processo de significado dessas narrativas míticas.
VULA: Para fazer uma tradução literária, o tradutor precisa ter um bom conhecimento biográfico sobre o autor da obra?
Adail: O conhecimento biográfico sobre o autor ajuda bastante, mas não é a única condição. O ideal, se formos pensar em termos de prática tradutória, seria que o tradutor, antes de traduzir, fosse leitor da obra, se deixasse deleitar pela obra. Conhecer a biografia do autor ajuda bastante, inclusive, nas escolhas que ele vai fazer. As línguas são distintas entre si e elas querem dizer a mesma coisa, mas de formas diferentes, por isso usamos o conceito de equivalência na tradução para dizer exatamente isso: “olha, o que tá escrito aqui é exatamente como no original, só que da nossa maneira, na maneira da nossa língua.” Há algumas pessoas que pensam que o jeito que está no original deve ser na tradução, mas com isso estamos dizendo que as línguas são iguais, que funcionam da mesma forma.
VULA: Qual a maior dificuldade de expressar o sentimento original da língua primária durante a tradução?
Adail: Vai depender do que o texto traz, do que o texto é. Por exemplo, estou desenvolvendo com meus alunos a tradução de um corpus da área literária, mitos de iorubá escritos em inglês. Meus alunos encontraram tremenda dificuldade, porque na cultura do povo dessa língua, por exemplo: “a lua” é ele, não ela. É sobre como aquele povo vê a lua. E não há, linguisticamente falando, nenhuma dificuldade para o tradutor identificar a diferença entre “he/she” “ele/ela” – na tradução inglês – português. Mas, em termos culturais, o tradutor se vê numa cilada, porque ele vai ter que tomar a decisão tradutória para o seguinte: ou ele traduz “a lua” como “ela”, no português, e mantém a nossa idealização da lua como um ser feminino, ou ele mantém ”ele” e assim apresenta o leitor brasileiro àquela cultura. Estou trazendo esse exemplo justamente porque vai depender do tipo de texto, os elementos que aquele texto tem, os desafios que ele vai apresentar ao tradutor. Tem textos que são super fáceis de traduzir, mas há outros textos que trazem desafios não linguísticos, mas sobretudo culturais – esses são os mais complexos.
VULA: Pensando nisso, se alguém quiser afirmar que existem línguas que não são compatíveis de tradução para o português, isso seria falso?
Adail: Olha, todas as línguas podem ser traduzidas. Há teóricos da tradução que há muito tempo falam isso. Não existe impossibilidade tradutória, existe o desafio da tradução. Quanto mais distante forem as línguas, certamente há maior probabilidade de desafios acontecerem, mas todas as línguas são, digamos assim, traduzíveis.
VULA: Quando você fala “distantes”, você diz distante no sentido das origens?
Adail: Exatamente. Em uma base românica, línguas que vieram do latim, há línguas que são muito aproximadas, logo você consegue desenvolver estratégias de tradução com uma certa facilidade. Dificuldades sempre vão existir. Vai depender da distância entre as línguas e as dificuldades serão maiores ou menores.