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É verdade que as mulheres falam mais que os homens? – Atentando para o Senso Comum a partir da Ciência Linguística (II)

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Neste artigo, vamos apresentar os resultados de um estudo realizado pelos pesquisadores Matthias Mehl, Simine Vazire, Nairán Ramírez-Esparza, Richard B. Slatcher e James W. Pennebaker, publicado em 2012, que compara a quantidade de palavras faladas por mulheres e homens e tenta responder se é verdade aquela história de que as mulheres são mais falantes que os homens.

A resposta é: não. Os resultados da pesquisa indicam que não é verdade que as mulheres falam mais que os homens.

A maneira como os pesquisadores chegaram a essa conclusão servirá de pano de fundo para o que vamos tratar hoje: apesar de ser interessante saber que mulheres não falam mais do que homens, o que importa para nós aqui não é descobrir quem é mais falante, mas outra coisa: por que a gente sempre acreditou, e saiu repetindo essa bobagem, que as mulheres falam mais que os homens?

Aqui no artigo vamos aproveitar essa questão para retornar a um ponto que discutimos em outros artigos, que é a relação entre conhecimento, verdade, senso comum e ciência (LINK1, LINK 2). O estudo da equipe de Matthias Mehl nos ajudará a elaborar um pouco mais sobre esses temas.


Quem manda na verdade sou eu?


Para começar, vamos partir da seguinte pergunta: quando nós afirmamos alguma coisa sobre o mundo, quanto de verdade existe na nossa afirmação?

Por exemplo, se eu afirmar que, neste exato momento, “você está lendo um texto sobre

Popularização de Ciências da Linguagem”, quanto disso é verdadeiro? Por outro lado, se eu afirmar outra coisa, “você está lendo um romance de José de Alencar”, existe alguma verdade nessa afirmação? Naturalmente, a resposta para a primeira pergunta seria que a afirmação é verdadeira, ao passo que, para a segunda, seria o contrário – a afirmação é falsa. Até aqui tudo bem; mas as perguntas que decorrem disso são assim: como sabemos disso? De onde vem a nossa certeza de que ‘x’ é igual a ‘x’, e não é igual a ‘y’?

A questão da ‘verdade’ é muito complicada, e para essa pergunta ainda não existe uma resposta simples. Com efeito, o que existem são várias tentativas de procurar responder essas perguntas, mas nenhuma é a definitiva. Cada área do conhecimento tenta abordá-la de uma maneira diferente. A Linguística pode oferecer algum conhecimento sobre o que é ‘verdade’ no que diz respeito ao discurso das pessoas, assim como também oferecem diferentes perspectivas a Psicologia, a História, a Filosofia, a Matemática, e tantas outras áreas.

De forma bastante geral e simplória, no campo das Ciências da Linguagem, podemos dizer que a ‘verdade’ é ‘o que as pessoas dizem acreditar que seja verdade’. Ou seja, a ‘verdade’ é um discurso elaborado a partir de um conceito interpessoal – criado e reproduzido pela interação entre as pessoas. Vejamos um exemplo, no Texto 1a seguir. Esse texto é uma conversa entre dois colegas, 1 e 2, sobre uma questão de genética da aula de biologia.

COLEGA 1: A gente não sabe o quê? XY.
COLEGA 2:  A gente não sabe o quê…
COLEGA 1:  Se ele teve filho… se ele teve filha.
COLEGA 2: Peraí–
COLEGA 1: Ah não, não é filh–
COLEGA 2: Se o casal é normal pra hemofilia, então o do homem não tem agazinho, não? No X? COLEGA 1: O homem é agazão, então.
COLEGA 2: Como que cê sabe?
COLEGA 1: Porque ele é normal.
COLEGA 2: Ah! Ele é normal significa que ele tem?
COLEGA 1: Tem.
COLEGA 2: Ah, tá.

Essa conversa é um texto argumentativo, no qual o Colega 2 não conhece o conceito de ‘normal para hemofilia’ e por isso não entende quando o Colega 1 disse: “O homem é agazão, então”. Como forma de explicar, o Colega 1 liga o fato de o homem ser agazão ao conceito de ‘normal’ em genética. O Colega 2, parece então ter compreendido a relação e testa a hipótese pedindo a confirmação: “Ah! Ele é normal significa que ele tem?”. A confirmação, por fim é dada pelo Colega 1: “Tem”.

A partir desse texto, uma afirmação como “Normal para hemofilia significa que o homem é hemofílico” é verdadeira, mas não por causa da genética das pessoas, e sim porque o Colega 1 conseguiu convencer o Colega 2 e, na interação entre eles, esse dado passou a ser verdade. Acontece que, para quem se lembra das aulas de biologia da escola, ‘normal’ significa exatamente o contrário do que está no texto; quem é normal para hemofilia, não tem. Se puxarmos pela memória, vamos lembrar de vários casos desse tipo, de uma coisa que era verdade, mas depois deixou de ser; ou então que a uma afirmação falsa foi relativizada, com muitos “mas não é bem assim… não foi isso o que eu quis dizer… vocês que entenderam errado”.

Partindo dessa ideia de que a verdade é um conceito interpessoal, podemos então fazer outras perguntas: quais os motivos de uma determinada afirmação se tornar verdade? Em que condições? Por que determinadas afirmações têm mais chance de se tornar verdade do que outras? Para respondermos a essas outras perguntas, temos que investigar não a ‘verdade dos fatos’, mas a maneira como as pessoas se relacionam. Isto porque será na qualidade das relações interpessoais que encontraremos evidências para entender melhor como as afirmações assumem status de verdadeiras.

Mais uma vez, há várias maneiras de se abordar essa questão. Por exemplo, é possível investigar relações de poder entre as pessoas e associar a quantidade de poder que uma pessoa possui, a afirmação que ela diz, e a verdade. Geralmente, pessoas com autoridade tendem a ter mais credibilidade e, por isso, aumenta também a chance de suas afirmações serem tomadas como verdadeiras com mais frequência (se um sacerdote, ou uma especialista, uma pessoa respeitada, uma pessoa muito rica, uma influencer, etc. falar algo, então deve ser verdade). Uma outra forma é observar o que traz benefícios para as pessoas. Geralmente, quando uma coisa é boa para nós, tendemos a acreditar que essa coisa é verdadeira (se eu acho que o chá das 12 ervas cura a minha dor de cabeça, então é verdade que esse chá tem poder medicinal).

Figura 1 – Duas das formas de abordar a natureza da verdade como relação entre as pessoas: alguém com autoridade, e uma afirmação que é boa para nós.

O problema com esses dois tipos de verdade é que elas nem sempre tomam como medida os fatos ou os acontecimentos. Pode ser que pessoas com poder simplesmente inventem mentiras que são mais convenientes para elas (às vezes até por má fé) em lugar de dizer a verdade. Outras vezes, quando uma mentira é boa para nós, preferimos conviver com ela do que substituí-la pela verdade.


O que há de verdade nisso?


René Descartes, o filósofo e matemático francês, formulou bastante bem esse problema. No seu texto ‘Discurso do Método’, ele explica essa questão provocando que a opinião de todas as pessoas não serve para nada:

“…observando com um olhar de filósofo as variadas ações e empreendimentos de todos os homens, não exista quase nenhum que não me parece fútil e inútil…

E completa dizendo que a melhor opinião sobre qualquer assunto é a dele mesmo.

não deixo de lograr extraordinária satisfação do progresso que creio já ter feito na procura da verdade e de conceber tais esperanças para o futuro que, entre as ocupações dos homens puramente homens existe alguma que seja solidariamente boa e importante, atrevo a acreditar que é aquela que escolhi”.

Mas, por acreditar que a opinião dele próprio não quer dizer lá muita coisa, pela razão óbvia que é mais fácil acreditar em uma mentira que é boa para si mesmo do que na verdade, então talvez fosse melhor pensar de maneira diferente. O filósofo aí apresenta o problema:

Contudo, pode ocorrer que me engane, e talvez não seja mais do que um pouco de cobre e vidro o que eu tomo por ouro e diamantes…”

Assim, Descartes introduz a dúvida do que acreditamos como um elemento sobre a forma de entendermos a verdade, o que vale tanto para as verdades que são conclusão da nossa própria experiência de vida, quanto para as verdades que nos foram contadas por outras pessoas:

Sei como estamos sujeitos a nos enganar no que nos diz respeito, e como também nos devem ser suspeitos os juízos de nossos amigos, quando são a nosso favor”.

Como consequência desse problema, surge a partir do pensamento de pessoas como Descartes e outras que pensaram sobre métodos para construirmos conhecimento uma terceira forma, que seria basear uma ocorrência no futuro a partir da observação do passado. Por exemplo, suponhamos que todos os dias desta semana, um ônibus passou no ponto precisamente às 7h00. Se estivermos no ponto às 6h45, e alguém chega e pergunta ‘o ônibus vai passar neste ponto às 7h00?’, podemos responder que ‘sim’, e ter certeza de que isso é verdade, porque estamos baseando uma ocorrência futura em uma experiência do passado – é verdade que o ônibus vai passar amanhã porque passou ontem.

Essa maneira de entender a ‘verdade’ é muito particular, portanto diferente das outras duas formas anteriores, por dois motivos. O primeiro, é que ela pode perder a condição de verdade a qualquer momento (o ônibus pode ser que não passe). Mas, ainda assim, ela nos compele a dizer que é verdade, com a pequena chance de falhar. Ou seja, a verdade neste caso deixa de ser absoluta, e passa a ter um componente de probabilidade. O segundo motivo é que ela depende menos da nossa individualidade – depende menos da figura de autoridade, ou do que é bom para mim mesmo. Ela continua sendo interpessoal, mas menos individualizada. Em outras palavras, nós transferimos a negociação entre as pessoas do caráter que elas têm para aquilo que, de comum acordo, aceitamos como verdade.

Esse movimento é o que podemos chamar de ‘objetividade’. No caso da verdade que é baseada em uma ocorrência futura a partir da observação do passado, dizemos que uma afirmação é objetiva quando ela está, o máximo possível, livre da opinião pessoal, ou das parcialidades de uma pessoa – o que, no fim das contas, é o mesmo que dizer que: uma afirmação objetiva é a afirmação que passou pela negociação entre as pessoas e foi, em conjunto, aceita como verdade.

A ideia de basear ocorrências futuras em observações do passado tem um maior grau de objetividade porque ela não depende exclusivamente de quem observou, nem de quem irá ter a experiência no futuro. Voltando ao exemplo do ônibus, se nós tivermos uma tabela com a quantidade de vezes que o ônibus passou no ponto, podemos afirmar que ele vai, sim, passar hoje às 7h00, e também amanhã e todos os outros dias. E isso não depende de eu acreditar se ele vai passar ou não; mesmo que eu acreditar por dogma que ele não vai passar, posso afirmar por observação que vai.

Da mesma maneira, pode vir uma figura de altíssima autoridade e dizer o contrário, mas isso não torna a coisa verdadeira. Pode vir o Papa e falar alguma coisa do tipo: “mesmo que o ônibus tenha passado às 7h00 todos os dias, a chance de ele não passar hoje é maior”, que ainda assim sabemos que, honestamente, a chance maior é de o ônibus passar. Parece muito estranho, não é verdade? Como é possível isso: acredito que não, mas afirmo que sim…? Ou então: eu sei que esta pessoa está achando que está dizendo a verdade, mas no fundo ela está mentindo…? Esse aparente paradoxo está diretamente relacionado com a relação entre o senso comum e o conhecimento especializado, que vamos tratar na próxima seção.


O que acreditamos não precisa interferir necessariamente no que afirmamos


Em um outro artigo, tratamos de modo mais detalhado sobre senso comum e conhecimento especializado (LINK). De forma breve, podemos caracterizar assim:

– O senso comum é um termo utilizado para falar da forma mais comum que um grupo de pessoas (uma comunidade, uma sociedade ou uma cultura) vive sua vida cotidiana. Portanto, o senso comum abarca quase todos os nossos comportamentos, conhecimentos, crenças e maneiras de ver e interagir com o mundo. Ele seria uma “receita” para vivermos a nossa vida no dia-a-dia na sociedade em que vivemos. Quase tudo o que sabemos e praticamos na nossa vida vem do senso comum. Essa nossa forma básica de viver no mundo é aprendida na nossa interação com a comunidade em que vivemos desde o início da infância, com a família e, mais tarde com as outras instituições. A ‘verdade’ no senso comum parte, precisamente, do que é comum – o jeito certo de fazer as coisas é o jeito que aprendi com minha mãe; é o jeito que vejo meus amigos fazerem, que é reforçado pela escola, a religião, as leis, a mídia e a indústria cultural.

– O conhecimento especializado, de maneira diferente, não tem como seguir diretamente o conhecimento tradicional. Este é construído a partir da ideia de ‘dúvida’ – se estamos diante de um acontecimento, e não sabemos o que pensar ou como agir, qual é a melhor forma de proceder? Seria fazer o que a minha mãe ensinou? Ou o que aprendi na escola? Ou o que ouvi na igreja?

Ora, a forma especializada não é nada disso. O primeiro passo é ‘duvidar’ se a forma comum e tradicional de agir é certa (nas palavras de Descartes, às vezes o que imaginamos ser ouro ou diamante não passa de cobre e vidro). Com isso, a solução é observar esse acontecimento e descrever como ele acontece. Em seguida, criar uma hipótese de como esse acontecimento irá acontecer no futuro – a verdade está em basear uma ocorrência no futuro a partir da observação do passado. Assim, teremos um conhecimento especializado sobre o que esse acontecimento é, e também sobre como deveremos agir.

É muito importante ressaltar que a ‘verdade’, por consequência, é um conceito muito frágil e provisório, pois ela parte de não saber – não existe jeito certo de fazer as coisas; o que existe é uma tentativa de acertar, baseada em observações. A verdade é somente uma hipótese que, até o presente momento, foi confirmada pela nossa observação. Por isso é possível que duas ideias contraditórias do caso em questão como “o que eu acredito” e “o que eu afirmo” existam ao mesmo tempo. O que eu acredito vem do senso comum, ao passo que o que eu afirmo vem do conhecimento especializado.

Por exemplo, se eu acreditar na religião do Pastafarismo (https://es.wikipedia.org/wiki/Monstruo_de_Espagueti_Volador), aceito que o mundo foi criado pelo Monstro Espaguete Voador quando este ficou embriagado. Aceito também que o Monstro Espaguete Voador é o único deus verdadeiro porque o nosso cérebro é uma vasilha cheia de espaguete. No entanto, tendo como base o conhecimento especializado da biologia, podemos afirmar que o cérebro não é feito de espaguete.

Figura 2 – O Monstro Espaguete Voador (por Niklas Jansson – Android Arts, Public Domain, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=48906232).

Ressaltamos, e isso é muito importante, que o conhecimento do senso comum e do conhecimento especializado não são opostos, nem que um deles substitui o outro. Ambos devem co-existir porque, para a maioria dos casos, não existe conhecimento especializado que nos ensina a viver, nem conhecimento comum que resolva problemas técnicos e de alta complexidade.

Se a sua comunidade e a sua cultura – por meio da família, da igreja, da escola, etc. – ensinaram que o Monstro Espaguete Voador criou o mundo, e você se identifica com a sua cultura, então vai fundo: adore e cultue o seu deus que contém glúten sem medo de ser feliz. Porém, quando precisar da ajuda da biologia e da medicina, não há problema algum em tomar como base o conhecimento especializado da Área da Saúde. É esse o motivo pelo qual, de forma geral, quando falamos de conhecimento especializado, entramos no domínio da Filosofia e da Ciência, e das áreas do conhecimento criadas a partir do conhecimento científico.

Por que a Ciência se vale do conhecimento especializado, da premissa da dúvida, da verdade provisória e, principalmente, da observação pregressa para modelar eventos futuros?

Porque, no fim das contas, a Ciência não existe para nos dizer o que é a “verdade verdadeira” sobre todas as coisas e pregar as regras de como devemos viver a nossa vida; mas sim para fazer uma descrição sobre o mundo que nos oriente a agir de uma forma mais previsível. E, se conseguirmos prever melhor como as coisas vão acontecer, a chance de sabermos o que fazer aumenta.

Em grande medida, essa base da Ciência não é estranha ao senso comum, pois na nossa vida cotidiana também nos valemos desse mesmo método para tomar muitas decisões na nossa vida (se eu sei que o ônibus vai passar 7h00, não adianta chegar ao ponto às 7h12). A questão da Ciência é que ela potencializa esse método, e o torna a medida principal, se não a única medida, sobre as coisas.

Vejamos um trecho do famoso texto de René Descartes, ‘Discurso do Método’, no qual o pensador francês explica os passos que o levaram ao tal método a partir de quatro passos. Vale observar como ele faz de tudo para evitar que a verdade seja apenas o resultado de uma crença:

o primeiro era o de nunca aceitar algo como verdadeiro… o segundo, o de repartir cada uma das dificuldades que eu analisasse em tantas parcelas quantas fossem possíveis e necessárias… o terceiro, o de conduzir por ordem meus pensamentos, iniciando pelos objetos mais simples e mais fáceis de conhecer, para elevar-me, pouco a pouco, como galgando degraus, até o conhecimento dos mais compostos… E o último, o de efetuar em toda parte relações metódicas tão completas e revisões tão gerais nas quais eu tivesse a certeza de nada omitir” (Descartes, Discurso do Método).

FIGURA 2 – René Descartes e fac-símile de sua obra.

Diante dessas considerações, podemos agora retomar o subtítulo deste artigo, “atentando para o senso comum a partir da Ciência Linguística”, que tem o objetivo de nos ajudar a prestar atenção nos fenômenos do mundo a partir desse ponto de vista da dúvida e do método. O pano de fundo, a ‘verdade’ de que mulher fala muito – muito mais que homem –, vai servir para ilustrarmos com um fenômeno. E, com isso, substituir a ‘verdade’ de que mulher fala muito – muito mais que homem – pelos dados que vêm da observação.

Do ponto de vista do que já sabemos até agora, a pergunta “por que a gente sempre acreditou, e saiu repetindo essa bobagem, que as mulheres falam mais que os homens?” já indica a sua resposta: ora, acreditamos nisso porque tomamos essa verdade do senso comum, provavelmente por conta de situações de autoridade, preconceito ou de conveniência (i.e., o que é bom pra mim).

O trabalho de Mehl e seus colegas pesquisadores (Mehl et al., 2007) será apresentado a seguir.


As mulheres realmente falam mais que os homens? (mehl et al., 2007)


Estudos apontam que, apesar dos estereótipos que vemos no nosso dia-a-dia, e que também nós próprios reproduzimos sem pensar, as mulheres não falam mais do que os homens. Na verdade, a quantidade que uma pessoa fala por dia, ao que tudo indica, independe de seu sexo biológico, ou de sua identidade de gênero.

Pesquisadores da Universidade do Arizona, juntamente com colegas de outras universidades, motivados por questionar um suposto “fato científico” de que as mulheres são mais falantes, simplesmente porque são mulheres, mediram o “grau de falação” em grupos de mulheres e homens, com a ajuda de uma tecnologia inovadora, o gravador por ativação eletrônica – EAR (no inglês Electronically Activated Recorder), que grava todas as conversas das pessoas, de forma intermitente por longos períodos de tempo.

O artigo publicado na Revista Science, da AAAS – Associação Americana para o Avanço da Ciência – surge como resposta a um estudo anterior, da pesquisadora L. Brizerdinne, que havia feito uma pesquisa na qual as mulheres falavam 20.000 palavras por dia, ao passo que os homens falavam cerca de 7.000 palavras/dia.

“Esses números circularam muito na mídia – rádio, televisão e jornais (como na CNN, CBS, NPR, na revista Newsweek e no New York Times e Washington Post). Por isso, a diferença de 20 mil para mulheres contra 7 mil para homens se tornou mitológica na nossa cultura, e essa diferença é citada na mídia como se fosse uma verdade há pelo menos 15 anos”, afirmam os pesquisadores.

O estudo teve como marco principal um novo método de capturar a fala das pessoas. Até então, era comum gravar uma pessoa por longos períodos, por meio de um gravador amarrado à pessoa durante todo o dia, ou por vários dias. Ou outra forma de fazer era gravar muitas pessoas conversando juntas em um mesmo ambiente, mas por um período menor de tempo. O método apresentado no artigo permitiu que se gravassem muitas pessoas por um longo período de tempo.

A equipe de Mehl desenvolveu a tecnologia de um gravador digital chamado EAR, que grava 30 segundos de fala a cada 12,5 minutos, durante vários dias, por todo o tempo que estiver ligado. A partir da quantidade de amostras de fala, é possível calcular uma estimativa de quantas palavras são faladas por dia.

A vantagem do EAR sobre os outros métodos é que fica muito mais fácil, rápido e preciso aumentar significativamente o número da amostra. Por isso, a pesquisa contou um número grande de participantes, 210 mulheres e 186 homens, perfazendo 396 no total. Da mesma forma, o período de coleta também pôde ser mais extenso, sem sofrer muitas adversidades, e a coleta foi feita ao longo de 6 anos, entre 1998 e 2004.

Figura 2 – O histograma da pesquisa de Mehl et al. (2007).

Na Figura 2, o histograma mostra a distribuição de palavras faladas por mulheres (em amarelo, à esquerda) e homens (em vermelho, à direita) segundo o tamanho e a posição de barras horizontais. Quanto maior forem as barras, maior a quantidade de participantes envolvidos; quanto mais alta estiver a barra, mais palavras são faladas. Por exemplo, a barra maior para mulheres inclui cerca de 30 participantes, e está próxima da marca de 20 mil palavras. Já a barra maior para homens inclui cerca de 30 participantes e está um pouco acima da marca de 10 mil palavras.

A partir do suporte de cálculos estatísticos, os resultados da pesquisa apontaram que, em média, as mulheres falam 16.215 palavras/dia, ao passo que os homens falam 15.669 palavras/dia. Em ambos os casos, considerou-se que as pessoas ficam acordadas, portanto envolvidas em situações de potencial fala, em média 17 horas por dia.

“O contraste entre os sexos na média de palavras diárias (uma diferença de 546 palavras) equivale a apenas 7% da variabilidade padrão entre mulheres e homens. Além disso, a diferença não possui significância estatística (com P=0,248). Por isso, os dados que encontramos não conseguem mostrar uma diferença confiável entre os sexos para o número de palavras faladas por dia “, confirmam os pesquisadores.

Apesar da força destes resultados, os pesquisadores apontam limitações para o estudo, principalmente com relação ao perfil demográfico dos participantes. A pesquisa foi realizada apenas em dois países, EUA e México, e em duas línguas, inglês e espanhol. Da mesma forma, a idade dos participantes foi muito parecida, todos tendo entre 17 e 29 anos, e todos com educação universitária.

Entretanto, os pesquisadores ressaltam que “nenhuma das nossas amostras conseguem dar base para a ideia de que as mulheres gastam muito mais do seu orçamento linguístico do que os homens. E dizemos mais: no que diz respeito à diferença no uso de palavras entre os sexos ser determinada pela biologia de mulher ou de homem, e por isso ter sido um produto da evolução por adaptação, então ela deveria ser observada mesmo em uma amostra homogênea como a nossa, tanto quanto em uma amostra mais diversificada”. E assim concluem que “o estereótipo – tão disseminado e exaustivamente veiculado nos meios de comunicação – de que as mulheres são mais falantes, não tem qualquer base de sustentação”.


Vai um linguista aí?


Vamos agora pensar um pouco em que medida o trabalho de Mehl e seus colegas constrói conhecimento especializado, a partir de um pensamento técnico.

A dúvida

Em primeiro lugar, precisamos destacar o papel importantíssimo que a dúvida ocupa na motivação para o trabalho ter sido feito. O senso comum nos diz que as mulheres falam muito mais que os homens. Quantas vezes já ouvimos isso – tanto nos ambientes familiares da nossa convivência, quanto nos meios de comunicação e do entretenimento? Certamente centenas de vezes. E, como apontam os pesquisadores, até mesmo uma pesquisa apontava para isso – o trabalho de L. Brizendine. Ou seja, a verdade já existia. Mas foi justamente a base sobre como o conhecimento técnico é construído – nunca aceitar algo como verdadeiro só porque alguém com autoridade falou – que Mehl e seus colegas decidiram seguir com seu estudo.


Basear uma ocorrência no futuro a partir da observação do passado


Para saber se as mulheres realmente são mais falantes que os homens, a pesquisa de Mehl e seus colegas utilizou como forma de coletar dados unicamente a observação.

Caso não fosse de seu interesse produzir um conhecimento especializado, os pesquisadores poderiam sair pela rua entrevistando as pessoas, perguntando o que elas acham: “mulher fala mais que homem?” Ou então, poderiam fazer um levantamento em jornais, revistas, programas de TV, redes sociais e contar quantas vezes alguém afirma que mulheres falam mais do que homens. Mas, em todos os casos como esses, nunca iriam observar diretamente o fenômeno que estavam querendo observar, qual seja: a quantidade que as mulheres falam em comparação com a quantidade que os homens falam.

Por isso, decidiram por um método de observação direta, que foi gravar as pessoas falando, nas mais diferentes situações de suas vidas, por um longo período de tempo.


Reconhecer os limites daquilo que dizemos ser verdade


Apesar de seus resultados serem confiáveis, a pesquisa aponta que existe, sim, uma chance de ela não ser verdadeira para quaisquer situações. Inclusive, aponta os motivos, como por exemplo, o perfil das pessoas e as poucas línguas (apenas 2) que as pessoas falam.

Reconhecer as limitações do conhecimento que produzimos é extremamente importante, por 3 motivos. O primeiro, mais óbvio, é que não estamos querendo dizer que a nossa verdade é absoluta e eterna. O segundo é que demonstramos que a nossa verdade é apenas uma hipótese baseada em observações, e que por isso mesmo a sua natureza é de ser apenas uma probabilidade de ocorrência. E o terceiro é abrir caminho para pesquisas futuras que podem desenvolver técnicas e métodos melhores e medir com mais precisão os fenômenos. O fato da pesquisa de Mehl et al. (2007) ter tido dados mais precisos do que a de Brizendine foi porque conseguiram desenvolver uma tecnologia de gravação de fala e um método para coletar e analisar os dados melhor.

No início do artigo, propusemos um exercício para pensarmos sobre formas de como o conhecimento técnico pode nos ajudar a observar e explicar os fenômenos do mundo de forma especializada. Para tanto, demos início explorando o conceito de ‘verdade’, que pode ser entendido não como um fato real, natural do mundo, mas sim como um discurso construído entre as pessoas.

Após discutir sobre 3 formas diferentes de como acontece essa construção – por meio de (i) voz de autoridade, (ii) conveniência para nós mesmos e (iii) hipótese baseada em observação – nós nos concentramos em aspectos da terceira forma, ilustrada por trechos da obra de Descartes. Em seguida, tocamos brevemente na questão da complementaridade entre senso comum e conhecimento especializado, uma vez que só faz sentido falar do segundo relativamente ao primeiro. Por fim, utilizamos o trabalho de Mehl et al. (2007) para ilustrar como a verdade enquanto hipótese baseada em observação acontece na área das Ciências da Linguagem.

Como conclusão, pudemos compreender melhor a diferença entre a verdade do senso comum, que possui autoridade por seu valor, e a verdade científica, que é uma hipótese comprovável até o momento em que for desbancada. É muito importante ressaltar que ambas as verdades são importantes para a nossa vida, pois têm propósitos diferentes. Contudo, é também importante sabermos que são diferentes para que a nossa crença não interfira (ou interfira o mínimo possível) na nossa observação.


Referências


BRIZENDINE, L. The Female Brain. New York, Morgan Road Books, 2006.

MEHL, M.; VAZIRE, S.; RAMÍREZ-ESPARZA, N.; SLATCHER, R.; PENNEBAKER, J. Are women really more talkative than men?. Science. 2007, Jul 6;317(5834):82.

DESCARTES, R. Discurso do método. [tradução Maria Ermantina Galvão]. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

GOULD, S. J. A falsa medida do homem. São Paulo: Martins Fontes, 1991.

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