Aprender uma língua estrangeira não é tarefa fácil, porque exige dedicação, disciplina e estudo intenso. Desde o início desse percurso de aprendizado, entender um pouco melhor sobre o conceito de ‘língua estrangeira’ e o papel que ela passa a ter na nossa vida pode ajudar. Por isso, o objetivo deste artigo é fazer algumas considerações gerais sobre o aprendizado de uma língua estrangeira. Essas considerações têm como base muitas pesquisas nas áreas de Linguística Aplicada e também da Descrição Funcional das Línguas.
A Linguística Aplicada é um campo que se ocupa do papel que a Linguística deve desempenhar na solução de problemas reais que as pessoas precisam resolver utilizando a língua – como por exemplo, aprender uma língua estrangeira para fins de trabalho e estudo.
A Descrição Funcional das Língua é uma abordagem da Linguística que procura descrever como as línguas estão organizadas a partir da forma como são usadas pelos falantes em situações reais de uso, como por exemplo: no trabalho, na escola, na família, nos grupos sociais, na forma como produzimos e consumimos objetos da cultura. Em outras palavras, esse tipo de descrição está orientado pela ideia de como as línguas funcionam.
Descrição Formal | Descrição Funcional | |
Linguística Teórica | Descreve a língua como um sistema de regras | Descreve a língua como um sistema de usos |
Linguística Aplicada | Aplica regras para problemas formais no uso da língua (ex. computação, estudos da mente, ensino de regras linguísticas) | Resolve problemas da vida real quando as pessoas precisam da língua (ex. ensino de línguas, comunicação intercultural, tradução, questões de refugiados e imigrantes, linguística forense, programas educacionais) |
Além da base Aplicada e Funcional, este artigo faz um recorte específico no aprendizado de línguas. Iremos nos concentrar no aprendizado de línguas estrangeiras principalmente por adultos. Assim, nós não iremos aqui tratar da forma como as pessoas aprendem as suas línguas maternas, ou alguma outra língua em contextos de socialização ainda na infância; também não vamos tratar da Segunda Língua (também conhecida como L2), que é a língua das pessoas que mudam de país/região (como no caso de imigrantes) e passam a usar a língua desse país/região para todas as atividades de sua vida. O nosso foco é realmente a língua estrangeira, em contextos formais de ensino, que acontece a partir da adolescência.
Por fim, antes de começarmos, cabe destacar que, apesar de haver um volume muito grande de estudos sobre como as línguas são aprendidas, não há um consenso unânime sobre metodologias, abordagens ou formas de estudo das línguas estrangeiras. Isso acontece por vários motivos, que dependem de outras tantas variáveis, como por exemplo: as semelhanças entre as línguas, o tempo dedicado ao estudo, o propósito e as necessidades do aprendizado, a semelhanças entre as culturas que falam as línguas, a história de cada pessoa que estuda a língua estrangeira.
Assim, nós iremos aqui fazer considerações gerais sobre alguns temas que são importantes para quem pensa em estudar uma língua estrangeira. Esperamos, com isso, poder iluminar um pouco algumas questões que sempre acabam se associando a esse tema.
Este artigo está dividido em duas partes. Aqui, na primeira parte, iremos discutir alguns conceitos importantes e também algumas lendas que podem interferir no aprendizado de uma língua estrangeira. Na segunda parte, iremos definir melhor o que significa aprender uma língua estrangeira do ponto de vista da sua funcionalidade.
1. PARA QUE APRENDER UMA LÍNGUA ESTRANGEIRA?
Quando uma pessoa adulta decide que deve aprender uma língua estrangeira, essa decisão sempre é a resposta para um problema. E o problema é: decidir se vale mesmo a pena investir, por um tempo prolongado, o seu esforço, a sua dedicação e o seu dinheiro em aprender uma outra língua.
Existem levantamentos em que às pessoas é feita a pergunta: “para que aprender uma língua estrangeira?”. E as respostas, naturalmente, são variadas. Mas, para efeito das considerações que aqui estamos fazendo, vamos pensar em três tipos genéricos.
O primeiro se relaciona à curiosidade de conhecer como são outros lugares do mundo. Nesse caso, quem decide aprender uma língua estrangeira está pensando em algum lugar específico e quer ter contato com a vida cotidiana, a sociedade, e com a cultura desse lugar. Para as pessoas que se enquadram nesse tipo, não é somente a língua, mas muitos outros aspectos da vida nesse outro lugar onde a língua estrangeira é falada são importantes; quem sabe até mesmo um dia poder viajar para esse lugar e poder ter um contato mais próximo com essa outra cultura, que se dá fortemente pela língua.
O segundo tipo se relaciona à vontade de entender como outras línguas funcionam. É uma motivação essencialmente dirigida pela curiosidade intelectual e simbólica. Por isso, esta seria uma busca muito mais linguística do que de vivência, pois neste segundo caso importa menos a vida, a sociedade e o dia-a-dia das pessoas, e importam mais os textos clássicos escritos nessa língua, a sonoridade, a gramática, a literatura, a história, e a organização linguística como um todo.
Por fim, um terceiro tipo genérico que podemos pensar está relacionado a uma necessidade prática da vida. Para este último tipo, o problema de dar uma resposta à pergunta “para que aprender uma língua estrangeira?” surge por questões de estudo, como por exemplo, fazer uma prova ou intercâmbio; por questões de trabalho, como por exemplo, trabalhar em uma empresa multinacional ou uma ONG que atua em vários países; ou por questões históricas e geográficas, como por exemplo, morar em uma região de imigração ou conviver com pessoas que falam outras línguas.
Saber de uma forma mais clara a nossa motivação para aprender uma língua estrangeira é importante, pois não só delimita um caminho que devemos percorrer nesse aprendizado, como também ajuda na forma como gerenciamos os nossos recursos de tempo, dedicação, dinheiro, etc. para esse aprendizado.
Por exemplo, para o primeiro tipo, faz muito sentido buscar aprender textos orientados para as relações interpessoais que auxiliam no convívio cotidiano com as outras pessoas. Já para o segundo tipo, mais importante talvez seria estudar literatura, filosofia, história, gramática e discurso na língua estrangeira. Ou, para o terceiro tipo, para quem necessita da língua estrangeira como ferramenta de trabalho, provavelmente é mais importante focalizar no aprendizado de textos relativos à atividade profissional e no convívio com as outras pessoas no contexto de trabalho.
2. UMA COLEÇÃO DE LENDAS URBANAS
Assim como qualquer outra atividade que é difícil, o processo para aprender uma língua estrangeira acaba se envolvendo com algumas crenças, lendas e histórias fantásticas sobre como esse aprendizado acontece.
Atividades difíceis como aprender um instrumento musical, emagrecer 30 quilos em um mês, ganhar muito dinheiro rápido sem sair de casa, ou aprender uma língua estrangeira em pouco tempo de forma fluente são alguns dos alvos principais desse tipo de lenda, pois parecem envolver algum tipo de mágica que, se conseguirmos ter acesso a ela, iremos resolver todos os nossos problemas para sempre.
A perturbação causada por esse tipo de pensamento mágico sobre o aprendizado da língua estrangeira é que essas lendas podem acabar influenciando a forma como entendemos o nosso percurso e, por isso, desviam a forma como gerenciamos o nosso aprendizado.
Por isso, vamos aqui listar algumas dessas lendas urbanas sobre o aprendizado de línguas estrangeiras e tecer sobre elas alguns comentários. Esperamos, com isso, exemplificar uma diferença entre um pensamento mágico sobre como se aprenderia uma língua e o que de fato os resultados de pesquisa da Linguística Aplicada nos mostram.
Lenda 1: Só consegue aprender uma língua estrangeira quem começou quando criança.
Neste ponto é muito importante fazermos uma distinção entre ‘língua materna’ e ‘língua estrangeira’. Na área da Linguística Aplicada, estes são dois conceitos, portanto são termos técnicos definidos segundo alguns critérios estabelecidos pelos resultados de pesquisa.
O conceito de ‘língua materna’ se aplica à língua que aprendemos ainda no início da primeira infância. Esta é a língua que nos é ensinada desde quando nascemos. Todos nós aprendemos a língua materna em um contexto de socialização, com as pessoas que cuidaram de nós. Assim, à medida que vamos aprendendo a língua materna, vamos ao mesmo tempo aprendendo sobre a forma como funciona a sociedade em que vivemos, a forma como devemos nos comportar e os elementos da nossa cultura.
É na língua materna que aprendemos conceitos muito importantes sobre a nossa sobrevivência física (alimentação, segurança, higiene, saúde, comportamento, e como o mundo funciona) e também sobre a sobrevivência social e psicológica (laços afetivos com a família, com nosso grupo social, com a cultura, as nossas emoções e sentimentos).
Do ponto de vista psíquico e neurológico, o aprendizado da língua materna determina um padrão muito particular no cérebro, correlacionando as áreas da linguagem com outras áreas, tais como a musculatura do aparelho fonador, a audição, a visão e a capacidade de associar símbolos e o pensamento abstrato – ou seja associar “coisas físicas” com “conceitos abstratos”, como por exemplo associar “um grupo de pessoas” com “família”; “regras que temos que seguir” com “legislação”; “quantidades de objetos” com “aritmética”, “acontecimentos do mundo físico” com “ciência” e assim por diante.
Um ponto muito importante que cabe aqui destacar é o seguinte: uma pessoa pode ter mais de uma língua materna. Se uma criança nasce e cresce em um contexto no qual mais de uma língua é utilizada em sua socialização inicial, então essa criança terá duas, três ou até mais línguas maternas.
Para nós brasileiros, devemos destacar o seguinte aspecto. Em muitas situações importantes da nossa vida, acabamos ouvindo muito que a língua falada no Brasil é o português. Ouvimos isso na escola, na mídia, nas conversas do dia-a-dia; todos os concursos públicos que incluem a língua portuguesa como ponto de prova, e assim por diante. Essa ideia acaba sendo propagada para outros lugares também. Com isso, ouvimos também que: “na Inglaterra fala-se inglês; na França, fala-se francês; na Alemanha, fala-se alemão…”. Por isso, muitos de nós brasileiros crescemos acreditando, por engano, que a regra seria uma língua por país. Talvez possa parecer uma experiência muito diferente, mas é muito interessante observar que, ao contrário, o multilinguismo é o caso mais comum para a maioria das pessoas do nosso planeta. Sim, é verdade: a maior parte das pessoas do mundo possui mais de uma língua materna!
Tabela 1: Estimativa de quantas línguas maternas são faladas por grupos diferentes de pessoas em alguns países do mundo, que nós brasileiros geralmente imaginamos que são monolíngues
país | número estimado de línguas maternas | exemplos |
Itália | 50 | arbëresh, siciliano, veneto |
França | 38 | bretão, árabe, occitano |
Espanha | 21 | catalão, euskera, aragonês |
Portugal | 6 | galego, mirandês, caló |
Reino Unido | 20 | galês, punjabi, irlandês |
Eua | 430 | hopi, espanhol, cherokee |
Canadá | 65 | cree, francês, inuktitut |
México | 350 | tepehuán, kiliwa, texistepec |
Argentina | 20 | aymara, mapuche, quechua |
Paraguai | 20 | guaraní, toba mascoy, tomáraho |
Brasil | 270 | krenak, alemão, tucano |
Já o conceito de ‘língua estrangeira’ pressupõe um entendimento muito diferente do papel dessa língua na vida das pessoas. Em contraposição à(s) língua(s) materna(s), todo mundo que aprende uma língua estrangeira deve, necessariamente, ter aprendido uma outra língua materna antes. Com isso, o aprendizado da língua estrangeira sempre se dá em um contexto no qual pelo menos uma outra língua já existe e o falante já foi socializado, educado, e inserido em uma outra cultura previamente. O cérebro do aprendiz de língua estrangeira também já passou pelo processo de desenvolvimento linguístico.
Ao contrário da língua materna, para a qual o contexto de aprendizado é o da socialização, no caso da língua estrangeira o contexto de aprendizado é o formal. Isto significa que a língua estrangeira não é aprendida por meio das práticas sociais e culturais na vida do dia-a-dia. Ao contrário, ela acontece por meio do estudo organizado, metódico, e disciplinar. Esse estudo, por sua vez, é dividido em conteúdos que são aprendidos aos poucos e se complementam de forma gradual. Em outras palavras, existe uma lógica didático-pedagógica no ensino da língua estrangeira.
Independentemente de a pessoa aprender língua estrangeira na escola, a partir de um currículo, com livros texto e de exercícios, ou se aprender de forma autodidata, o estudo da língua estrangeira sempre passa por um processo metódico e disciplinado, que é muitíssimo diferente daquele de socialização da primeira infância.
Uma vez que a língua estrangeira não é a língua de socialização, ninguém aprende uma língua estrangeira como forma de se inserir nos padrões sociais determinados de uma cultura. Isso quer dizer que, por mais “fluente” que uma pessoa possa ser na língua estrangeira, ela vai sempre ser estrangeira, pois é impossível para uma pessoa que já foi socializada, apagar a forma como concebe o mundo e desempenha suas relações sociais para começar tudo de novo do zero.
Por esses motivos, do ponto de vista psíquico e neurológico, a organização cerebral quando do aprendizado de uma língua estrangeira é diferente daquele da língua materna. As relações entre as áreas do cérebro são também diferentes e funcionam de formas distintas quando uma pessoa fala alguma de suas línguas estrangeiras em comparação com suas línguas maternas.
A Figura 1 mostra que, quanto mais claras as cores, maior a atividade cerebral em uma determinada região. Assim, o vermelho escuro indica menor atividade e o branco indica a atividade maior. Como podemos ver pela comparação na Figura 1, quando uma pessoa fala sua língua materna, utiliza uma menor quantidade de áreas do cérebro. Já quando ela fala uma língua estrangeira, utiliza uma quantidade maior de áreas, que incluem as mesmas da língua materna (porém de forma estendida) como também áreas diferentes. Igualmente, as áreas de maior intensidade também são diferentes. Esses dados sugerem que as pessoas que falam mais de uma língua (no caso, uma materna e uma estrangeira) usam mais esforço do cérebro, pois precisam controlar tanto a língua materna quanto a estrangeira ao mesmo tempo. Além disso, para falar a língua estrangeira, precisam também monitorar o uso dessa língua, sempre verificando/reformulando/corrigindo em tempo real a sua produção na língua estrangeira em comparação com a sua própria língua materna.
Tendo agora um entendimento melhor dos conceitos de ‘língua materna’ e ‘língua estrangeira’, podemos então nos perguntar: uma vez que língua materna e língua estrangeira são coisas diferentes, será que elas desempenham papéis distintos na vida das pessoas?
A resposta é: sim. A importância da língua materna é muito diferente da importância da língua estrangeira na vida das pessoas.
Recapitulando o que dissemos antes. A língua materna tem o papel de socializar as pessoas; é na nossa língua materna que estabelecemos laços sociais, afetivos e de comportamento com as pessoas que cuidam de nós no início da vida. Além disso, é por meio da nossa primeira língua que fazemos associações entre essa vida social e a forma como o mundo natural funciona. A língua acaba criando para nós uma “teoria do mundo”, pois aprendemos sobre o que o mundo é e como ele funciona por meio da nossa língua materna.
Já a língua estrangeira pode ter motivações distintas. Como mencionamos antes, ela é uma ferramenta muito importante para podermos ter acesso a outras culturas, ou entender como povos estrangeiros concebem o mundo em que vivem, ou ainda para questões da vida prática como o trabalho, estudo, ou situações de imigração ou regiões de fronteira com contato e intercâmbio entre línguas.
Desse ponto de vista, conseguimos compreender também porque é uma lenda dizer que só é possível aprender uma língua estrangeira começando quando criança. O fato é que a idade não está relacionada com a funcionalidade que damos para uma língua estrangeira. Assim, quando uma pessoa acredita nessa lenda, é porque está imaginando que aprender uma língua estrangeira é a mesma coisa que aprender uma língua materna. Mas, como vimos, isso não é verdade em nenhum sentido histórico, social, cultural, psicológico ou cerebral.
Lenda 2: Para aprender uma língua de verdade, é só indo para fora mesmo.
Essa é uma lenda que sobrepõe duas questões diferentes. Uma delas é comparar a vida cotidiana que levamos aqui no nosso país com uma suposta vida no exterior, em um outro contexto muito diferente. A outra é confundir exposição à língua estrangeira com estudo de fato.
Uma pessoa adulta que decide aprender uma língua estrangeira deve conciliar esse processo de aprendizado com muitas outras atividades, como o trabalho, dedicação à família (na maioria dos casos cuidando de filhos e dependentes), gerenciando a economia doméstica, além de muitos outras pequenas atividades que, ao se acumularem, somam muito tempo da vida, tais como o deslocamento para o trabalho, serviço de banco, uma geladeira que queima, um carro que quebra, um parente que adoece; além do tempo merecido para descanso e necessário para atividade física, estudo e especialização profissional, atividade político-social, lazer e consumo da produção cultural.
Quando a lenda de “ir para fora” é veiculada, não leva em conta o fato de que nenhuma dessas atividades que demandam tempo e energia vão ser, via de regra, realizadas no exterior. Quem “vai para fora”, não precisa se preocupar com a maioria dos problemas diários que deve resolver em sua vida cotidiana. Por exemplo, os contextos de intercâmbio, de estudo concentrado em uma escola estrangeira especializada em imersão, ou mesmo do turismo linguístico recebem toda a atenção da pessoa que estuda.
Outra coisa que frequentemente acontece é o aumento das horas de estudo dedicadas à língua estrangeira. Diversos resultados de pesquisa mostram que existe uma correlação entre o aprendizado da língua estrangeira com o tempo de engajamento no estudo dessa língua – com o engajamento podendo ser definido, em termos gerais, como a dedicação concentrada ao estudo.
Se na vida normal uma pessoa pode dedicar 4 horas da sua semana para o estudo, em um intercâmbio ou imersão irá dedicar 8 horas por dia – dez vezes mais. Por isso, um fator importante que a imersão proporciona é o tempo de exposição à língua estrangeira. Mas vale ressaltar que a quantidade de tempo ou de energia não se relacionam exclusivamente ao aprendizado da língua estrangeira, e sim com qualquer outra atividade da vida. Afinal, quem tem a oportunidade de dedicar 40 horas por semana exclusivas a uma atividade (pode ser um instrumento musical, um esporte, ou uma língua estrangeira), irá perceber uma maior evolução do que se pudesse dedicar 4 horas por semana.
Devemos levar em conta também a diferença entre exposição à língua estrangeira e estudo da língua estrangeira. A exposição significa o tanto de tempo e de oportunidade que temos para estar em contato com a língua. No entanto, não existe uma correlação direta entre exposição e aprendizado. Por isso, não basta estarmos expostos à língua; é preciso estudar. Nesse sentido, estudar significa aprender a controlar e usar a língua. Mais adiante vamos detalhar melhor esses conceitos, mas por enquanto, podemos definir ‘controle’ como entender ‘o que é e como funciona’ alguma categoria da língua; e ‘usar’ significa ‘aplicar o conhecimento da língua de forma adequada’.
Desse ponto de vista, conseguimos compreender também porque é uma lenda dizer que para aprender uma língua de verdade, é só indo para fora mesmo. “Ir para fora” somente não garante o aprendizado; pois é mais importante o tempo dedicado ao estudo (controlar e usar), que pode ser feito em qualquer lugar. Em outras palavras, nada – mas nada mesmo – impede que aprendamos uma língua estrangeira sem nunca ter ido para fora.
Lenda 3: Existe um método super especial que ensina “falar fluente” melhor do que qualquer outro método (de preferência, em muito pouco tempo).
A língua estrangeira, assim como qualquer outra atividade humana que necessita do desenvolvimento de habilidades, é um processo que, quanto mais complexo, mais longo. Portanto, dominar um instrumento musical, uma modalidade esportiva, exercer um trabalho especializado, jogar xadrez em alto nível ou controlar uma língua estrangeira se enquadram nesse processo de desenvolvimento. A consequência natural dessa observação é que ninguém se torna experto em um campo de atividades de forma mágica, por um método mágico.
Chama atenção aqui o seguinte problema: quanto menos entendemos como uma habilidade funciona, maior paradoxalmente é a nossa tendência a acreditar em métodos milagrosos. Para algumas profissões, como mestres enxadristas, esportistas de primeira linha ou empreendedores de sucesso são atribuídas descrições como ‘gênios’ ou ‘milagres’ que possuem um ‘dom’. Essas pessoas acabam até se tornando celebridades (por exemplo: Kasparov, Pelé, Bill Gates). Por outro lado, para os cientistas da Embrapa, cirurgiões de alta complexidade ou pilotos de avião-caça (por exemplo: “algum exemplo de celebridade nessas áreas?”), a ‘genialidade’ é substituída por estudo e trabalho regular e consistente.
Aprender línguas estrangeiras é, de alguma forma, visto como parte do primeiro grupo. Então, saber uma língua estrangeira é um ‘dom’. E ainda: quem tem esse ‘dom’ pode transformá-lo em um método milagroso e “ensinar rapidamente para quem não tem”.
Um “método infalível” para o ensino de língua estrangeira, seria um método que funcionaria independentemente de quaisquer outras variáveis. Para ser “bom mesmo”, esse método teria que então funcionar com todo tipo de perfil de gente: com quem não gosta de estudar, com quem nem quer aprender uma língua estrangeira, com quem não tem escolarização, com quem não tem tempo de estudar, etc. Se o método só funciona com quem quer aprender a língua estrangeira, então voltamos para o que as pesquisas já indicam: tempo de estudo e regularidade se tornam variáveis mais importantes que o método.
Lenda 4: O nosso objetivo é um dia falar como “falante nativo” ou “falante fluente”.
Essa lenda retoma o problema da diferença entre a primeira língua que aprendemos, a nossa língua materna (também chamada de L1) e a língua estrangeira (também chamada de LE), que aprendemos em contextos formais de aprendizado e que possuem objetivos específicos (trabalho, educação, convívio com estrangeiros, etc.).
O termo ‘falante nativo’ não é definido de forma técnica na Linguística, salvo como sinônimo de ‘alguém que fala a língua como L1’. Contudo, essa é uma definição bastante genérica, de pouca utilidade, pois “falar uma língua” implica em uma série de comportamentos muito mais complexos que não podem ser medidos de forma simples.
Um exemplo disso é a capacidade que uma pessoa que tem a mesma língua materna reconhecer outras pessoas. Por exemplo, quem tem o português brasileiro como língua materna é capaz de reconhecer outras pessoas que tem essa mesma língua como língua materna (isso é: um “falante nativo” é capaz de reconhecer se outro falante também é “nativo”).
Vamos fazer um teste? Aqui abaixo estão dois textos. Os dois textos são e-mails pessoais entre amigas. Um deles é de uma pessoa que tem português brasileiro como L1 e espanhol como LE. O outro é de uma pessoa que tem o espanhol como língua materna e o português brasileiro como língua estrangeira. Você consegue dizer qual texto foi feito por um “falante nativo” de português brasileiro e explicar por que você acha isso?
Texto 1
Bom dia, Maria!
Ja voltou da casa da sua mãe? Deu tudo certo lá com ela?
Eu to te escrevendo porque estou organizando um final de semana na Fazenda da Costa pro pessoal que veio semana passada. A ideia seria sair sabado 13/2 de manha (11hs) e voltar domingo 14/2 de tarde. Eles já ficariam num hotel perto da rodoviária mesmo, para pegar o ônibus na quarta cedo. Por enquanto seriam somente eles e eu. A Helena vai ficar lá em casa mesmo. Talvez eu leve minha menina. O que vc me diz?
Eu vou chamar um Uber para ir e voltar, assim nao preciso dirigir caso o tempo esteja chuvoso.
Abração
Texto 2
Olá Ana, muito obrigada por responder-me
Esperando que se encontre bem com sua família.
Escrevo pois infelizmente não consegui avançar muito como para poder terminar de fazer a encomenda, mas seguirei esta semana para tratar terminar o antes possível. Houve alguns dias que não pude trabalhar, pois tive que fazer muitas coisas aqui em casa, pois tanto o meu filho quanto a minha filha estão na época de prova e precisei estudar com eles.
Fiz um apontamento respeito como se conecta esse trabalho que eu estou fazendo com o que te entreguei no mês passado. Então se realiza através daquele gancho que fica do lado de for a da caixa.
Obrigada!
O Texto 1 foi feito por uma pessoa que L1 é espanhol e o Texto 2 por uma pessoa que L1 é português brasileiro. A pessoa do Texto 1 aprendeu português faz mais de 30 anos. A pessoa do texto 2 mudou-se para fora do Brasil na adolescência. Como é possível observar, essa definição de “nativo” não ajuda muito.
Cabe aqui também ressaltar que o conceito de “falante nativo”, especialmente no Brasil, está associado a um outro conceito muito vago e, até um pouco ingênuo, que é o de “falar sem sotaque”. Aqui, novamente, a falta de definição técnica é o problema. O conceito é vago porque a definição de ‘sotaque’ equivaleria a “falar de uma forma diferente daquela do nativo”. Contudo, como já vimos, a língua é muito mais do que apenas os sons que somos capazes de produzir; aprender uma língua não se resume a aprender apenas os sons dessa língua. E é ingênuo porque aprender a emitir os sons de uma língua “igual a um nativo” tem muito pouca relevância para quem vai utilizar essa língua como língua estrangeira.
Ademais, “falar como nativo” é uma característica do aprendizado de língua materna, e não de língua estrangeira. Por isso, está muito mais relacionado com a forma pela qual o cérebro relaciona as áreas da audição, linguagem e controle motor (da língua, lábios, etc.) na primeira infância, do que com aspectos simbólicos da língua propriamente ditos.
Existe uma comparação muito comum feita neste caso entre o sotaque e a caligrafia. Da mesma forma que precisamos escrever de maneira legível para que as outras pessoas nos entendam, precisamos também falar “de forma legível”. Mas esta seria, talvez, a única demanda de quem fala uma língua estrangeira que merece alguma dedicação.
No fim das contas, querer “falar como nativo” acaba se tornando uma crença de que poderíamos pertencer a uma outra cultura estrangeira, a qual valorizamos mais do que a nossa. Mas, de fato, essa não é uma questão de aprender a língua estrangeira; é somente um valor superficial mesmo.
Quanto ao “falante fluente”, a mesma imprecisão técnica surge mais uma vez. Não existe uma medida objetiva de fluência. O que existe, na verdade, é uma expectativa dos nossos interlocutores de que iremos produzir diferentes tipos de texto, com uma adequação esperada, em um determinado período de tempo. Em outras palavras, o que conta é se vamos falar ou escrever a coisa esperada, de maneira compreensível, em um tempo razoável – isso é tudo o que se espera de um falante de língua estrangeira.
De uma maneira curiosa, nesse ponto o uso da língua estrangeira pode até ser comparado, em certo sentido, com o uso da língua materna, pois a nossa L1 também sofre com esse problema da fluência. Se a nossa língua materna é, por exemplo, o português do Brasil, então seria óbvio aceitarmos que somos fluentes em português brasileiro, certo?
Como mencionamos, controlar uma língua é muito mais do que produzir os sons dessa língua. Algo mais importante é saber falar e escrever os textos. Isto porque os textos são a forma que nós seres humanos usamos a língua para atuar na nossa sociedade .
Por isso, mesmo na nossa língua materna, nós conseguimos ser “fluentes” somente na medida em que somos capazes de realizar uma determinada atividade social que necessita de um texto específico.
- Para conduzir uma reunião sobre o orçamento da empresa, não basta ser “fluente em português brasileiro”; é necessário principalmente falar e escrever, ler e interpretar textos de administração de empresas, planejamento de negócios e gestão”.
- Para fazer a defesa de um réu no tribunal, não basta ser “fluente em português brasileiro”; é necessário principalmente falar e escrever, ler e interpretar textos de direito, filosofia e retórica”.
- Para subir ao púlpito e fazer uma pregação na igreja, não basta ser “fluente em português brasileiro”; é necessário principalmente falar e escrever, ler e interpretar textos religiosos, de teologia e de relações interpessoais”.
- Para dar uma aula de respiração celular, não basta ser “fluente em português brasileiro”; é necessário principalmente falar e escrever, ler e interpretar textos de biologia e de didática”.
- Para fazer novos amigos, não basta ser “fluente em português brasileiro”; é necessário principalmente falar e escrever, ler e interpretar textos de convívio social, compartilhar histórias pessoais, dar conselhos e compartilhar partes importantes da vida”.
Assim a noção vaga de ‘fluência’ pode ser substituída por outra mais produtiva de ‘funcionalidade’ – ou a forma como utilizamos a língua para desempenhar as mais diversas atividades da vida.
SEM AS LENDAS, O QUE NOS RESTA?
Uma vez que não precisamos nos preocupar com essas lendas que podem atrapalhar o aprendizado da língua estrangeira, e entendemos que uma grande parte do percurso de se aprender uma língua no contexto formal de estudo é o tempo dedicado e a regularidade, podemos então nos concentrar em questões que realmente importem. Dentre elas, vamos dar destaque a duas: a funcionalidade – ou a finalidade que damos para o uso da língua – e o auto-monitoramento – ou a nossa capacidade de fazer a gestão do nosso tempo e demais recursos para que a nossa dedicação ao estudo possa ser aproveitada ao máximo.
Esses dois pontos irão ser tratados com mais detalhes na segunda parte do nosso artigo, que pode ser acessada pelo LINK.
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