Estudo que utiliza método de análise da Linguística Histórica nos mostra como muitos fenômenos considerados como “erros linguísticos” – erros de concordância nominal e verbal, ortográfico, de pronúncia – podem ser, na verdade, a preservação de uma estrutura do português brasileiro do passado.
Na pesquisa do projeto BTMLH (Banco de Textos Manuscritos: preparação de documentos para pesquisas em Linguística Histórica), foram feitas análises dos fenômenos linguísticos que estão presentes em documentos do séculos XVII ao século XIX da Região dos Inconfidentes, em Minas Gerais (Ouro Preto, Mariana, Cachoeira do Brumado, etc.).
“Os textos que mais prevalecem são testamentos. Se a pessoa estivesse prestes a morrer, ela chamava o tabelião, daí ele faria uma descrição dos bens que ela possui para, mais tarde, a nota ser passada para o Livro de Notas. É com esse livro que trabalhamos”, nos diz a pesquisadora Soelis Teixeira do Prado Mendes, professora do Instituto de Ciências Humanas e Sociais, da UFOP.
Segunda a pesquisadora, muita coisa da Língua permanece por séculos sem sofrer alterações e essas formas são preservadas na língua falada; já que a escrita, regida pela maneira tida como ‘correta de escrever’, tende a apagar o que está fora do suas regras de uso. Entretanto, ao analisar documentos antigos, vemos que a escrita presente neles também nos mostra vestígios de um uso oral que tem suas origens no uso da Língua do passado.
“Faz parte do senso coletivo a crença de que os usos linguísticos considerados como “erros” sejam frutos da ignorância do falante, mas, se fizermos uma volta ao passado da Língua, por meio de análise de manuscritos antigos, é possível detectarmos fenômenos linguísticos tidos apenas como contemporâneos”, explica Mendes.
Primeira parte da pesquisa
A primeira parte do projeto foi localizar, digitalizar e editar os manuscritos dos séculos XVII e XVIII. Eles foram coletados no Arquivo Histórico da Casa Setecentista de Mariana e também em arquivos da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição, em Ouro Preto. O acervo Casa Setecentista possui, também, documentação produzida pela Arquidiocese de Mariana e pela Câmara Municipal de Mariana que é quase toda cartorial, abrangendo um período que vai de 1709 a 1956, aproximadamente.
Ambos os arquivos possuem milhares de documentos denominados “autos”. Autos são documentos produzidos no decorrer do processo judicial, petições, termos de audiências, certidões, entre outros. Nessa parte do trabalho, utilizam-se normas de transcrição e critérios de leitura elaborados para que se possa transcrever os documentos da forma mais fidedigna possível.
“A primeira coisa que tem que fazer é criar o alfabeto do punho, o que requer muita atenção e prática. Por exemplo, o ‘a’ no início de uma palavra; o ‘a’ no meio da palavra e o ‘a’ do fim costumam ter estruturas diferentes e esses detalhes têm que ser identificados. À medida que você trabalha, você começa a se familiarizar com o texto. O segundo passo é a transcrição.”, explica Mendes.
O alfabeto de punho é criado a partir do documento que foi escrito a punho, ou seja, um documento escrito ou assinado pela própria pessoa que o produziu, por exemplo, um testamento escrito pelo próprio punho.
A partir dos documentos, extrai-se a estrutura gramatical daquele período e, com isso, sua gramática poderá ser disponibilizada para análise ou consulta. Em seguida, é feito um levantamento de seus fenômenos linguísticos, comparando-os com os do português brasileiro contemporâneo, procurando verificar se os contextos de uso são similares ou não.
Essa parte do projeto concentrou-se exclusivamente no tratamento do corpus, preparando o material para pesquisas de Linguística Histórica, nas quais os dados de uso pretérito da Língua, ou seja, do passado, deverão ser analisados. Em seguida, será criado um banco de manuscritos – digitalizados e transcritos – de forma a diminuir o tempo de trabalho do pesquisador da Linguística Histórica, de historiadores, e de outras áreas que tenham interesse no corpus. O banco de manuscritos está disponível para acesso público no site do projeto, confira: https://manuscriptum.posletras.ufop.br/
Segunda parte da pesquisa:
Pesquisas anteriores já discutiram fenômenos que foram preservados pelo português brasileiro contemporâneo. Assim como esse projeto, que busca levantar e analisar outros fenômenos linguísticos atuais que, para alguns, foram “deturpações do português brasileiro”. Os estudos linguísticos mostram que não há deturpações – apenas usos – e a Linguística Histórica amplia essa discussão quando demonstra que a Língua não apenas sofre mudanças em sua estrutura, mas também preserva muitas características.
Atualmente, é muito comum ouvirmos ou lermos estruturas frasais onde não é feita a concordância nominal e ou verbal, algo comum no português brasileiro contemporâneo, como no exemplo abaixo.
Mendes, em sua pesquisa de doutoramento, ao analisar manuscritos setecentistas chamados de “autos de devassas” de Vila Rica, de 1725), localizou fenômenos de ausência de concordância em contexto sintático parecido com o descrito acima. Devassas eram processos-crime onde constavam os relatos das testemunhas de um crime. Tinha características inquisitoriais, isto é, não assegurava o direito de defesa e de contraditório nos moldes conhecidos e utilizados atualmente no ocidente. O julgador e o acusador se confundiam neste rito processual.
Confira a imagem escaneada de um documento de 1743 e, abaixo, a transcrição do punho:
Tal como no exemplo da placa, o artigo “os” está no plural, e o substantivo “Referimento”, em destaque, está no singular.
Os desafios da pesquisa em Linguística Histórica: “niqueito no pecadodo Sexto”
A pesquisadora explica ainda que, frequentemente, aparecem palavras nesses documentos de significado difícil de se recuperar, fazendo com que o pesquisador(a) recorra a vários dicionários de várias épocas diferentes para encontrá-lo. Como foi o caso do vocábulo niqueito, com o qual Soélis se deparou em sua pesquisa, cujo significado pôde ser encontrado apenas em um dicionário na biblioteca de Lisboa.
Fonte: Mendes (2008).
Inicialmente, esse vocábulo seria uma forma variante de niquento e tem origem em nica, do latim nihil, que quer dizer “insignificância”; “ninharia”. Mas, numa consulta ao dicionário de Laudelino Freire (1954) constava o significado “Cópula carnal”. Essa informação, associada ao restante da frase “no pecadodo Sexto” e ao contexto do corpus, nos permitiram elaborar o significado para essa combinação.
Segundo consta no documento, a testemunha, em cujo depoimento há essa combinação lexical, afirma que a vítima, Francisco de Freitas, embora fosse bomsugeito, era niqueito no pecadodo Sexto; ou seja, fornicava com a mulher do próximo. Isso porque, segundo a testemunha, ele fora assassinato por causa de uma mulata que também “tratava”, isto é, tinha relacionamento considerado illicito, com o Escrivão da Câmara de Mariana (Ribeirão do Carmo).
O “pecadodo Sexto” faz referência ao Sexto Mandamento das Leis de Deus: Não cometerás adultério (Êx. 20,14). O vocábulo foi encontrado num Auto de Devassa de 1731. “As testemunhas eram chamadas pelo escrivão e, à medida que a pessoa ia dando seu relato, ele ia tomando nota. O processo do crime de onde retirei essa palavra era o de um sujeito que foi assassinado”, explica Soélis.
A pesquisa nos faz refletir sobre a concepção enraizada de que existe um certo e existe um errado na Língua, e que o certo está na Gramática Normativa. Essas concordâncias que não são realizadas são tidas como erros linguísticos pelo senso comum, e são frequentemente endossadas pela mídia e outras esferas da sociedade. Contudo, podemos encontrar em muitos documentos do passado que nos mostram que havia pessoas que já falavam e também produziam textos manuscritos com essa ausência de concordância, algo que está na língua até hoje e muito possivelmente irá continuar.
Vimos, também, como o trabalho do linguista histórico tem vários percalços, como o estado deteriorado em que se encontram alguns documentos e o fato deles conterem termos com significado difícil de se recuperar. Essa pesquisa pode contribuir, especialmente, para melhor conhecer a história da língua portuguesa e para a diminuição da falácia do “erro de português”.
“Não há erro linguístico. Ou seja, é um contra-argumento para quem acha que os falantes de agora estão corrompendo português, em especial com as pessoas que têm ou tiveram pouca chance de desenvolvimento econômico-social”, conclui a pesquisadora.
Referências:
Combinações lexicais restritas em manuscritos setecentistas de dupla concepção discursiva: escrita e oral – Soélis Teixeira do Prado Mendes (2008) / Universidade Federal de Minas Gerais.
DEVASSA – Arquivo Nacional e a História Luso-brasileira. [S. l.], 23 nov. 2021. Disponível em: http://historialuso.an.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=6140:devassa&catid=2072&Itemid=496. Acesso em: 14 mar. 2023.