por Mário Eduardo Viaro (DLCV-FFLCH-USP)
Mário Eduardo Viaro é um linguista e tradutor brasileiro, professor titular da Universidade de São Paulo (USP). Ele atua principalmente nas áreas de Etimologia, Morfologia Histórica, Língua Portuguesa, Linguística Histórica, Sociolinguística e Dialetologia do Português.
Você já ouviu falar que a palavra aluno significa um ser sem luz? Pois no artigo a seguir o professor Viaro discute a etimologia da palavra e nos mostra a curiosa construção da falsa etimologia que ganhou muita força entre estudantes e professores. Além disso, o professor também discute as origens da palavra aluno, contribuindo para a compreensão deste termo que já deu tanto o que falar no meio acadêmico. Confira abaixo a discussão e nos conte aqui: você já sabia o significado de aluno?
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Tendo trabalhado especificamente com Etimologia ao longo de mais de trinta anos e escrito livros e artigos de divulgação onde transpareço a minha convicção de que existe uma ciência etimológica, acostumei-me a não me enfurecer mais com explicações pseudoetimológicas obviamente equivocadas, mas confesso que ainda fico perplexo com algumas posturas, sobretudo de pessoas formadoras de opinião, que deveriam valorizar o trabalho acadêmico (VIARO, 2004; 2011). Por alguma razão, que só uma outra ciência como a Psicologia (ou a Retórica ou a Estilística) pode explicar, algumas pseudoetimologias têm vida demasiadamente longa e são infensas a qualquer tipo de argumento coerente que as mostre desarrazoadas. Muitas vezes me deparei com o seguinte problema: alguém já demonstrou convincentemente a falsidade de uma proposta etimológica, contudo a versão fantasiosa volta com força, ignorando toda a argumentação científica, sobretudo quando amparada em alguma suposta autoridade, que, via de regra, não entende nada de Linguística, Filologia ou História.
Um dos casos mais resistentes é a associação entre a palavra aluno e a sua exegese pseudoetimológica, que interpreta os discentes como “seres sem luz”. Nenhuma proposta etimológica tem verdade absoluta em seu bojo: é possível até mesmo falar de graus de certeza (VIARO & BIZZOCCHI, 2016), no entanto, não é raro que a revelação etimológica seja fundada num erro histórico e linguístico. Para ser possível associar aluno com alguém sem luz, o que defende essa hipótese diz que o a- é o mesmo prefixo negativo de palavras como acéfalo ou átomo e o restante da palavra, -luno estaria vinculado à ideia de “luz” de alguma forma tortuosa. De fato, em muitíssimas palavras da língua portuguesa existe um a- que nada mais é que uma negação, mas ou isso ocorre com palavras antigas gregas ou com palavras modernas, via francês, que não raro são híbridas. O caso de aluno seria, na maioria de seus defensores, no entanto, uma forma antiga, ainda que não o digam claramente. Contudo, não há palavras antigas que misturem a- grego com um radical latino, da mesma forma como vemos hoje em neologismos recentes (na sua grande maioria franceses ou ingleses que entraram, por empréstimo, no português), tais como televisão (grego+latim) ou internet (latim+inglês). Assim sendo, é impossível que uma palavra latina como alumnus, fonte da palavra aluno em português, seja entendida com uma palavra formada com um prefixo grego e um radical latino já na Antiguidade, pois os dicionários de latim não nos dão outros exemplos similares. Simples assim: só esse argumento já bastaria para convencer alguém ajuizado de que a explicação do alumnus sem luz está errada do ponto de vista da História da língua.
Acontece que temos condição de sabermos isso apenas hoje, com um conhecimento sólido da Linguística, acumulado e desenvolvido ao longo dos séculos XIX e XX. Dados historicamente desconhecidos entram sabidamente em conflito com a ingrata intuição subjetiva do falante nativo, sobre a qual se arroga dispor de domínio absoluto e de posicionamento de juiz (até mesmo como pressuposto teórico às vezes). Para um falante minimamente escolarizado que aceitasse essa etimologia falsa, bastaria ler um livro antigo que a citasse e, tendo contato com a solução pseudoetimológica, saber da existência de um prefixo grego a- negativo em língua portuguesa e fazer alguma associação do radical opaco -luno com palavras como luz, lua, lunar, lunático, para que a malfadada explicação retornasse, marcando (às vezes com indignação) a testa dos discentes com a tacha de seres pouco iluminados. A ressurreição das pseudoetimologias mediante leitura de obras inadequadas foi e é uma realidade.
Os dicionaristas de obras etimológicas costumam ignorar a explicação fantasiosa. No Dicionário Houaiss, aparece as seguintes informações para a etimologia de aluno: “lat. alumnus, i no sentido de ‘criança de peito, lactente, menino, aluno, discípulo’, der. do v. alĕre no sentido defazer aumentar, crescer, desenvolver, nutrir, alimentar, criar, sustentar, produzir, fortalecer etc.”. Antônio Geraldo da Cunha (1982) se limita a dizer que o étimo da palavra portuguesa aluno está no latim alumnus, -i. José Pedro Machado (2003) esclarece que essa palavra entrou no português renascentista por via erudita e que no latim significava “criança, discípulo”. De fato, o Dicionário Houaiss aponta como primeira ocorrência do vocábulo português aluno o ano de 1572. Mesmo Francisco da Silveira Bueno (1963), famoso por alguns de seus comentários boquirrotos, não se posiciona contra a pseudoetimologia e aponta austeramente esse mesmo étimo correto, sem aparentemente dignar-se a fazer qualquer comentário sobre a etimologia fantasiosa. A esses autores, versados em latim, isso era algo tão óbvio que lhes pareceria estar rebaixando-se ao discutir tamanha sandice, que julgavam anedótica ou simplesmente o étimo fantasioso não circulava e não lhes atiçava a indignação?
Parece haver alguma antiguidade da falsa etimologia, pois também a vemos em espanhol, língua em que a forma alumno parece ainda mais convincentemente ligada a um radical aparentado com palavras espanholas como luminoso, luminaria etc. A falta de luz do aluno estaria, segundo a argumentação rodopiante do étimo fantasioso, diretamente ligada à escuridão da ignorância, pois, segundo essa concepção, mentes de alunos são uma espécie de tabula rasa a ser preenchida com o conhecimento e, portanto, com a luminosidade dos ensinamentos dos professores. Por causa dessa falsa etimologia, algumas pessoas submeteram a palavra aluno (e a sua correspondente em espanhol alumno) a um processo de tabuização, como ocorre com muitas outras atualmente canceladas pelos movimentos do politicamente correto. A despeito da opinião que se tenha com relação a essa postura entre professores e alunos, neste caso não convém pensar em substitutos para a palavra aluno, pois, como dissemos, o suposto étimo que evoca o preconceito da ausência de luz dos alunos é falso e somente por algum tipo de comportamento semelhante ao dos supersticiosos seria sensato manter tantos pés atrás com relação a uma palavra cujo étimo não se sustenta.
Mesmo Isidoro de Sevilha (560-636), muitas injustamente evocado como fonte de etimologias errôneas tradicionais, explica corretamente a origem da palavra alumnus em latim: “Alumnus: denomina-se do ato de alimentar-se – pode-se chamar de alumnus tanto o que se alimenta (alit), quanto o que é alimentado (alitur), … mas melhor (é empregar para) aquele que se alimenta” (Alumnus, ab alendo vocatus: licet et qui alit et qui alitur, alumnus dici potest, id est, et qui nutrit, et qui nutritur, sed melius tamen qui nutrit), de modo que, se quisermos encontrar a gênese do erro, teremos de fazê-lo em épocas mais recentes, ou então Isidoro, como os etimólogos mais recentes, ignorou o étimo fantasioso (LINDSAY, 1910, cap. X, 2).
De fato, os indo-europeístas e o dicionário de Ernout & Meillet (2001) verificam que a terminação latina –umnus tem a mesma origem do –ómenos do grego (que aparece, por exemplo, na palavra fenômeno, prolegômeno e em outras menos comuns) e nada mais é que uma desinência do particípio passado passivo. Assim, o radical al- proveniente do verbo alere “alimentar-se”, com esse significado, gerou o antigo particípio alumnus “aquele que foi alimentado”, ou seja, o bebê, a criança e, de certa forma, o aluno ou o discípulo, se entendermos o alimento abstrato do conhecimento. Da mesma raiz al– proviria o particípio altus com o mesmo significado original, que passou para “aquele que se alimentou (e cresceu)” e, portanto, ficou “alto”. Isidoro de Sevilha, portanto, estava certo. Cognatas de altus, muitas vezes desde tempos muito antigos, são palavras portuguesas, obtidas por malabarismos semânticos ao longo do tempo, como altura, altar, altivo, enaltecer, alçar, realçar, alça, exaltar etc. Com mudança vocálica também temos adolescens, em que al- aparece como –ol– devido a mudanças fonéticas existentes no período arcaico do latim: rodeado do prefixo ad– e do sufixo –esc-, a paráfrase de adolescens seria algo como “aquele que vem crescendo”, ou seja, deixando de ser criança. Essa palavra foi adotada como vocábulo culto no português: adolescente e seu derivado adolescência. A raiz também aparece como –ul– noutro derivado, adultus “aquele que cresceu”, donde o português adulto. Mais transparente, a raiz al– se vê no substantivo (inicialmente abstrato) alimentum, também adotado em palavras portuguesas como alimento, alimentar, alimentação etc.
Assim, a palavra aluno vem de uma acepção do latim alumnus, que tem, sim, de algum modo, a ideia derivada de uma outra tabula rasa, a saber, daquele que se alimenta (e cresce) do conhecimento que lhe é conferido, mas de modo algum é aquele que não tem luz. Não há elementos na Linguística Histórico-Comparativa para sustentar qualquer ligação entre essa palavra alumnus e, digamos, a palavra latina lumen “luz”, como pretendem falsos etimólogos e a maior razão para sustentar essa tese é a presença de um suposto prefixo grego numa palavra tão antiga. É esse elemento do anacronismo, além da raridade e do ineditismo de um pretenso hibridismo sem contexto histórico que o justifique, que lança por terra a associação de alunos com seres sem luz. Um argumento adicional seriam as derivações semânticas de lumen, que não tinham nada a ver com o conhecimento: afora as metáforas de lumen para a claridade, também eram usadas outras, entre os autores romanos citados por Gaffiot (1934), para os olhos, para a vista ou para a visão, para o dia, para a vida, para a clareza do discurso ou para os ornamentos retóricos, para a glória, mas nunca para um conhecimento que se opõe às trevas da ignorância. Aparentemente, essa associação tão positiva do conhecimento (oposta à associação medieval, negativa e tradicional com a punição no Jardim do Éden) só pode ter ocorrido em período bem posterior, talvez durante o Iluminismo, palavra aliás cognata de lumen. Apesar das luzes dos séculos XVII e XVIII, tampouco encontramos essa etimologia fantasiosa em dicionaristas como Bluteau ou em Morais. A luz dos iluministas não foi obnubilada com esse tipo de bobagem, se era presente em sua época, pois eles também conheciam bem a história das palavras.
Então de onde surgiu essa ideia errônea que vincula o aluno a um ser sem luz, tão divulgada quanto criticada na internet hoje em dia, a ponto de não podemos ignorar mais seus efeitos na Educação, nas políticas públicas e no comportamento de colegas? A divulgação do erro é algo que tem um comportamento semelhante a um vírus, como nos são apresentados os memes por Dawkins (2004:119-127). Toda primeira ocorrência de um equívoco deveria, como os étimos, estar documentado: essa primeira ocorrência é aquilo que o etimólogo chama de terminus a quo na sua profissão de investigar a sincronia pretérita em que surge qualquer fenômeno linguístico. Fernão de Oliveira, no capítulo 31 de sua Gramática da linguagem portuguesa, de 1536, já demonstra desconfiança para propostas etimológicas feitas sem investigação. É incrível que quase cinco séculos depois, em plena época em que a informação viceja por toda parte, ainda sejamos alvos tão fáceis do delírio pseudoetimológico proveniente de pessoas que pensam que é possível falar do passado sem o mínimo de investigação e sem conhecimento histórico da suposta sincronia que sustentaria um étimo híbrido em um momento que tais hibridismos inexistiam ou um étimo com um significado metafórico totalmente anacrônico ou, ainda pior, acredite num factoide criado por si mesmo num momento que Sartre chamaria de má-fé. Seis anos atrás, Sérgio Rodrigues (2016:309-310) já denunciava a história do aluno sem luz chamando-a de “velha e furadíssima lenda etimológica” e discorrendo sobre seu lamentável ressurgimento pela via da internet. Na verdade, nem mesmo os inúmeros manuais e livros de divulgação consultados por mim (às vezes sabidamente redigidos apressadamente e sem cuidado com os dados em latim) falam da tal etimologia delirante, pelo contrário, mencionam a correta, quando tratam da palavra aluno, ignorando a explicação que menciona a ausência de luz, a qual, suspeito que tenha surgido no mundo hispanófono antes de divulgar-se nas redes sociais em língua portuguesa. Ignoro quando foi criada, mas se veio de algum almanaque do século XX, com certeza se difundiu muito no início do século XXI com as redes sociais da internet. Aliás, a minha ignorância sobre o criador da pseudoetimologia é um convite à pesquisa do leitor. De fato, algumas pessoas nas redes sociais que a defendem sabem tão pouco de línguas antigas que até afirmam que lumen é uma palavra grega. Felizmente, a regra geral é de crítica à pseudoetimologia e de lamento às pessoas que continuam tendo atitude política beligerante baseada na tal etimologia fantasiosa.
Conclusão: como em muitos outros casos, a falsa etimologia é irritante, mas resistente ao tempo e aos argumentos dos especialistas. Já devíamos estar acostumados com esse fenômeno negacionista nas Ciências Humanas, sobretudo quando se trata de História ou de ciências interdisciplinares com os estudos históricos, mas ainda a maioria de nós não nos conformamos. Não sei se é um consolo, mas até mesmo a Física, a Biologia e a Medicina não se têm mostrado imunes, nos últimos tempos, à ignorância e seus profissionais e pesquisadores têm sofrido igualmente com a falta de respeito e com a arrogância de pseudoespecialistas. Talvez conviver com esse tipo de situação seja doloroso, mas faça parte da massificação mundial do conhecimento. Já houve algo parecido na História, quando surgiu a Imprensa, como mostram autores do Humanismo e do Renascimento, que expunham suas ideias pouco embasadas na realidade como nunca antes na História havia ocorrido. Com a internet e seu poder gigantesco de alcance isso não poderia ser diferente. Talvez só nos falte exercitar a paciência para suportar esse tipo de invasão de leigos tão opiniosos em áreas que requerem formação, dedicação e estudo árduo às quais eles infelizmente não se dedicam.
REFERÊNCIAS:
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CUNHA, A. G. (coord) Dicionário etimológico Nova Fronteira da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.
DAWKINS, R. Chinese Junk and Chinese Whispers (from the Foreword to ‘the Meme Machine’ by Susan Blackmore). In: A Devil’s chaplain: reflections on hope, lies, science, and love. Boston/New York: A Mariner Book/Houghton Mifflin, 2004, p. 119-127.
ERNOUT, A.; MEILLET, A. Dictionnaire étymologique de la langue latine. Paris: Klincksieck, 1932 [2001].
GAFFIOT, F. Dictionnaire latin-français. Paris: Hachette, 1934.
HOUAISS, A.; VILLAR, M. (org.) Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva/
Instituto Antônio Houaiss, 2001.
LINDSAY, W. M. (ed) Isidori Hispaliensis episcopi etymologiarum sive originum libri XX. Oxford: At the Clarendon, 1910.
MACHADO, J. P. Dicionário etimológico da língua portuguesa. 5v. Lisboa: Confluência, 1952-1997. [Lisboa: Horizonte, 2003].
RODRIGUES, S. Viva a língua brasileira! São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
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VIARO, M. E.; BIZZOCCHI, A. L. Proposta de novos conceitos e uma nova notação na formulação de proposições e discussões etimológicas. Alfa. São Paulo, 60 (3): 579-601, 2016.