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A educação é uma casa? – Atentando para o Senso Comum a partir da Ciência Linguística - Vai um linguista aí?

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A educação é uma casa? – Atentando para o Senso Comum a partir da Ciência Linguística

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Neste artigo iremos relacionar dois assuntos. O primeiro é o ‘Senso Comum’; o segundo é a ‘Educação no Brasil’. Ao longo do artigo, iremos apresentar algumas características do senso comum e mostrar como ver o mundo a partir do senso comum orienta várias atitudes que tomamos na nossa vida.

Como exemplo, vamos mostrar algumas atitudes e pensamentos sobre a Educação no Brasil que são baseados no senso comum.

Em seguida, iremos então tratar de mostrar como o pensamento científico pode nos ajudar a prestar atenção nas coisas de uma forma diferente daquela do senso comum. E, com isso, vamos apontar como uma visão mais orientada pela ciência pode nos ajudar a pensar de forma diferente sobre os problemas da nossa vida.

Por fim, vamos utilizar a Ciência Linguística como base para ajudar a identificar o pensamento do senso comum no que diz respeito ao tema da Educação no Brasil.


Educação, direito de todxs


No nosso país, por muitas vezes, a gente ouve as pessoas darem sua opinião sobre alguns assuntos que são do interesse de todo mundo. Neste nosso artigo, vamos tomar como exemplo o tema da ‘Educação no Brasil’.

A educação é um direito de todos. A educação tem que ser inclusiva. A educação deve ser pública, gratuita e de qualidade. A educação é um dever do Estado. A educação é a garantia de um futuro melhor, etc…”

Essas aí são algumas das opiniões que ouvimos frequentemente quando as pessoas estão conversando sobre esse tema.

Buscando um dia alcançar uma “educação de qualidade para todxs”, profissionais de várias áreas de especialidade com formação em educação – como pedagogas e cientistas sociais –, mas também de outras áreas relacionadas – como gestoras públicas e líderes de movimentos sociais –, oferecem suas ideias e criam projetos no tema da ‘Educação no Brasil’.

Nesse percurso, muitas outras pessoas da nossa sociedade acabam também dando sua opinião. Com isso, além de profissionais e estudiosas da ‘Educação no Brasil’, outras profissionais, que muitas vezes atuam em áreas diferentes daquela da educação – ou seja, pessoas leigas no assunto – também oferecem ideias, sugestões e reflexões sobre esse tema.

Um dos motivos para isso é que a ‘Educação no Brasil’ é um tema que impacta diretamente a vida de todas as pessoas. Afinal de contas, no Brasil, uma boa parte da nossa cidadania é formada por meio da educação formal. Além disso, a chance de uma pessoa ter um futuro melhor e de ela conseguir trabalho de maior qualidade, com salário melhor, está relacionada ao tipo de educação que essa pessoa teve.

O IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – publica constantemente a Pesquisa Nacional Por Amostra de Domicílios Contínua, ou PNADC. O IBGE criou um livro contendo dados da PNADC de 2019 e nesse livro, está escrito na página 6:

“O nível de instrução possui relação positiva em relação ao rendimento médio mensal real de todos os trabalhos, ou seja: quanto maior o nível de instrução alcançado, maior o rendimento”.

Figura 1: No Brasil, quanto mais as pessoas estudam, maior a sua renda. Em 2019, uma pessoa com ensino superior completo ganhava em média R$ 5.108,00. Já outra pessoa sem instrução ganhava em média R$ 918,00 – ou seja, 5 vezes menos.

Fonte: IBGE, Diretoria de Pesquisas, Coordenação de Trabalho e Rendimento, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua 2019. https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101709_informativo.pdf

Embora esta não seja uma relação simples e direta, pois a renda não é fruto apenas da escolaridade, mas também por outros tipos de relação social que as pessoas constroem desde o berço da família e de sua classe social, o que a Pesquisa do IBGE mostra é um indicativo de como a ‘Educação no Brasil’ é um dos processos pelos quais a distribuição da riqueza é (ou não é) distribuída entre as pessoas.

Além da questão da renda, a educação também é importante por outros motivos. Ela é responsável por uma parte da nossa socialização, ajuda no nosso crescimento como cidadãs, e também porque é o caminho para muitas pessoas realizarem seus sonhos profissionais.

Por todos esses fatos, a educação é tão marcante na vida de todas as pessoas – quer por sua presença, ou mesmo por sua ausência. Nesse sentido, vez por outra testemunhamos alguém que trabalha em uma área muito distante daquela da educação – como por exemplo mecânicas de automóvel, dermatologistas, banqueiras, pianistas, técnicas em contabilidade ou marceneiras – também sentirem necessidade de opinar sobre o tema.

Em alguns desses casos, mesmo quando a pessoa que opina não tem estudos, formação ou experiência no tema ‘Educação no Brasil’, ela se expressa de uma maneira que, supostamente, caso sua ideia pudesse ser colocada em prática, iria apontar para um caminho melhor.

A educação deve preparar para o mercado de trabalho. A educação depende da vontade de cada um. A escola é uma extensão da família. A educação não pode ser política. A educação é uma casa que tem que começar pela base“.

Mas… será que é isso mesmo?

Nesse ponto, quando estamos lidando com a opinião de pessoas que não possuem conhecimento sobre um tema, será importante falarmos um pouco sobre os conceitos de ‘pessoa leiga’ e de ‘senso comum’.


A pessoa leiga


Do ponto de vista da Popularização da Ciência, nós definimos em um outro artigo quem é a ‘pessoa leiga’. Nesse caso, ‘leiga’ é a pessoa que não é especialista em uma determinada área. Uma bióloga é especialista em biologia, mas é leiga em engenharia espacial; já a engenheira espacial é leiga em jardinagem, e assim por diante.

Contudo, do ponto de vista das relações sociais, o conceito de ‘leigo’ tem um significado um pouco diferente. O conceito está relacionado com quem possui autoridade para emitir opinião sobre um determinado assunto. Nesse caso, a definição de ‘especialista’ também muda, passando de uma pessoa que conhece um determinado tema para uma pessoa que é autorizada a emitir opinião sobre esse tema.

Por exemplo, no Brasil, receitar remédio é uma prerrogativa legal de quem é médico. Assim, a médica é a especialista que está autorizada (pelo consenso da sociedade, mas também por lei) a “emitir sua opinião”, que é a opinião técnica de especialista, sobre um determinado curso de tratamento por meio de remédios. Nesse sentido, quando uma médica escreve uma receita, está então “emitindo uma opinião” sobre um assunto de sua especialidade. Porém, é possível que existam médicos que não entendem muito bem de um determinado tema da medicina e, em matéria de conhecimento médico, sejam leigas. No entanto, ainda assim, são consideradas especialistas no sentido de terem a autorização para emitir opinião. Cabe ressaltar que a questão da autorização é importante para assegurar qualidade e uniformidade nos serviços prestados.

Por outro lado, uma pessoa que tenha um conhecimento muito elevado sobre medicina e o funcionamento do corpo humano, e entenda completamente como determinada doença se desenvolve e os medicamentos necessários, se ela não tiver a formação em medicina, ela não pode, por lei, “emitir sua opinião” na forma de uma receita de remédio. Assim, uma pessoa formada em bioquímica, ou em farmácia, que entende muitíssimo bem como funciona um remédio, não pode receitar. Em outras palavras, é uma pessoa especialista em termos de conhecimento, mas é leiga em termos de autoridade; o químico que inventou a aspirina não pode receitar aspirina.

É evidente que o caso da medicina não é o único, pois existem muitas outras áreas que são bastante delimitadas e conseguem separar com clareza a diferença entre especialista autorizado e leigo não-autorizado. Basicamente, todas as profissões que possuem conselhos, ou exigem diploma, desenvolvem algum mecanismo desse tipo de regulamentação. E, destacamos, é extremamente importante que seja assim, para que se garanta a qualidade necessária das atividades profissionais.

O problema surge quando estamos tratando de alguma área que não pode ser regulamentada por lei, ou que é difícil de ser delimitada de forma clara. Essa é a situação, precisamente, do tema ‘Educação no Brasil’. Com efeito, existem profissionais especialistas autorizadas a trabalhar e, portanto, “emitir opinião” sobre educação – como é o caso de pedagogas, educadoras e professoras. Por outro lado, como o tema envolve questões variadas como economia, ciência, política, entre outras, fica mais difícil determinar quanto que uma pessoa leiga está autorizada a emitir opinião sobre esse tema.


O senso comum


O ‘senso comum’, por sua vez, também pode ser abordado nessas duas formas.

Do ponto de vista da Ciência, é um tipo de conhecimento que não é produzido a partir do método científico. Mais precisamente, estaria reduzido à etapa de observação inicial de algum fenômeno, sem portanto ser capaz de produzir uma explicação.

Do ponto de vista social, por outro lado, o ‘senso comum’ tem um significado um pouco diferente, e ele pode ser estendido para todas as nossas atividades da vida. Aqui, o senso comum seria: a maneira como todos nós entendemos o jeito que o mundo funciona e, por isso, agimos conforme as situações da vida necessitam.

Desde quando nascemos, aprendemos com as pessoas que nos criaram como o mundo funciona. Em muitas oportunidades na família, na escola, na igreja, com nossos amigos, etc., aprendemos todas as coisas ‘comuns’ que garantem a nossa sobrevivência. Desde a primeira infância aprendemos o que podemos comer, como nos vestir, qual língua falar, como nos comportar, além da maioria dos valores que iremos repetir durante a nossa vida, tais como respeito, pecado, amor, intolerância e assim por diante.

Esse conhecimento comum sobre as coisas é, mais tarde, ainda reforçado pelas regras sociais e pela indústria cultural e de entretenimento (músicas, filmes, podcasts, redes sociais, etc.). Tanto as regras da sociedade quanto a indústria cultural repetem os valores que aprendemos na infância – ou seja, a forma como a família ensina respeito, disciplina ou amor, etc. reflete o que a escola e a igreja ensinam, que por sua vez é reforçado por televisão, youtube, entre outros.

É por esse tipo de motivo que uma pessoa de Fortaleza e outra de Porto Alegre que pertencem à mesma classe em uma mesma época compartilham mais pensamentos, valores e crenças em comum do que com outras pessoas da mesma cidade, mas que são de classes diferentes. E, note-se, essas duas pessoas nunca precisarão se encontrar na vida para serem tão parecidas!

Assim, nem todos nós temos conhecimento técnico ou científico sobre como o mundo funciona. Aliás, a esmagadora maioria de nós não tem conhecimento técnico sobre quase nada. Isso porque não há tempo em uma vida humana para nos tornarmos especialistas em todas as coisas.

No entanto, isso não significa que não tenhamos algum conhecimento – adquirido por meio da observação, da experiência de vida, ou do aprendizado leigo – que seja suficiente para podermos levar a nossa vida. Quase ninguém é motorista profissional, mas isso não significa que não podemos dirigir; ou quase ninguém médica, mas isso não significa que não podemos cuidar da nossa própria saúde.

Disso, podemos concluir que a nossa vida é, portanto, primordialmente pautada pelo senso comum. Igualmente, o ‘senso comum’ não é individual de cada pessoa. Como o próprio nome do termo sugere, o senso é comum. Isso significa que a forma como enxergamos e entendemos o jeito que o mundo funciona é aprendida e compartilhada com as outras pessoas do nosso grupo social. Por isso, quando estamos diante de uma determinada situação da vida, tendemos a agir exatamente da mesma forma como a nossa mãe ensinou, ou como alguém da igreja fez, ou ainda da maneira como ouvimos em uma letra de música, e assim por diante.


O senso comum é essencial, mas pode criar problemas


É indiscutível que a vida seria melhor se todos pudéssemos agir como médicas diante de uma questão de saúde; agir como pedagogas para ajudar os filhos nas atividades da escola; agir como mestres de obra quando precisássemos fazer uma reforma em casa. Mas, naturalmente, isso é impossível. Nesse sentido, ninguém escapa do ‘senso comum’. Ele é (a maior) parte da nossa vida, e é o senso comum que garante que iremos agir de uma forma que, embora não seja a ideal, ela acaba sendo boa o suficiente para preservar a nossa própria existência no dia-a-dia.

Contudo, aí existe um problema que vai impactar diretamente o assunto que estamos tratando aqui neste artigo.

Tudo começa assim: ao vivermos no senso comum, automaticamente reproduzimos os comportamentos de outras pessoas do nosso grupo e também a forma como enxergamos o mundo. Até aí tudo bem. Porém, um comportamento que funciona quando é repetido, tende a ser no futuro repetido novamente, mesmo quando não funciona. Ou seja, o senso comum possui todos os comportamentos úteis para a nossa vida, mas também alguns outros que são inúteis.

E o problema então aparece: como o conhecimento do senso comum não é especializado, é mais fácil para o senso comum repetir também conhecimentos inúteis, pois nunca é possível verificar exatamente o que funciona ou não.

Quando estamos tratando de um comportamento relativamente inofensivo os conhecimentos inúteis continuam não sendo um problema grave, apesar de serem trabalhosos sem necessidade. A questão começa a ficar complicada quando esses conhecimentos passam a controlar a vida das pessoas sem qualquer necessidade. E ela fica realmente perigosa quando esses conhecimentos inúteis passam a obrigar as pessoas a se comportarem de uma forma prejudicial, mas que de tão natural ninguém consegue entender como “conhecimentos tradicionais, passados afetuosamente de mãe para filho, que garantem a nossa sobrevivência” podem realmente ser nocivos para outras pessoas.

Aqui nós estamos chamando a atenção para um fato muitíssimo importante: guardadas as devidas proporções, conhecimentos úteis do senso comum, tais como saber criar os filhos, absorver os valores de sua família, ou desenvolver uma ética do trabalho estão juntos com conhecimentos inúteis como fazer simpatias, que por sua vez fazem parte do mesmo processo de aprendizado, que também é afetivo do senso comum que conhecimentos nocivos como autoritarismo, racismo, e a própria falta de reflexão que naturaliza todas essas coisas.

Afinal, se nessa maneira de agir ou de ver o mundo, existir alguma forma de “maldade”, ou de reproduzir um comportamento “ruim”, nós acabamos por reproduzir o que é mau ou ruim também de forma natural por afeto às pessoas que nos criaram e ensinaram essas coisas.


O esforço para sair do senso comum


Uma vez que o nosso comportamento normal para viver a vida, bem como os nossos afetos, são construídos no senso comum, questionar a forma como pensamos, agimos e depositamos nosso amor e ódio é muito dolorosa. Afinal, agir contra a família, pensar contra a igreja, amar o que os amigos odeiam é, em princípio, uma coisa muito ruim.

Na esfera pessoal, o exercício de ‘tentar sair do senso comum’ é necessário quando começamos a nos incomodar com o comportamento ruim e a maldade que enxergamos em nós mesmos e nas pessoas próximas de nós. Uma reflexão mais profunda sobre as coisas que pensamos e sentimos faz-se necessária e, nesse ponto, tudo o que pode nos ajudar a provocar, questionar e mudar ajuda. Assim, fazer terapia, adquirir novas experiências de vida, e experimentar a arte são atividades que podemos realizar para nos ajudar nesse exercício doloroso de sair do senso comum.

Nota muito importante: esse esforço não é para substituir uma visão do senso comum por outra, mas sim para engajar com os nossos valores e afetos e questionar quais realmente são importantes e quais outros são apenas a reprodução de coisas inúteis ou da maldade que aprendemos de maneira natural. Portanto, não é trocar a crença na religião pela astrologia, ou o amor pela esquerda por amor à direita. De outra forma, o esforço é um permanente questionamento constante, pois as respostas para as coisas da vida nunca estão dadas de maneira definitiva.

Da mesma forma, não é apenas questionar pelo simples ato de questionar. O permanente questionamento constante implica em buscarmos respostas fora do senso comum, que se encontram na esfera íntima, por exemplo, na terapia, na arte ou no intenso estudo e reflexivo das situações que vivemos.


Saindo do senso comum na esfera social


Na esfera social, o exercício de sair do senso comum é semelhante.

Socialmente, ‘tentar sair do senso comum’ implica em encontrar um problema social – isto é, um comportamento ruim ou uma maldade que observamos no funcionamento da sociedade – e questionarmos. Da mesma forma, esse questionamento deve ser reflexivo, portanto buscando respostas fora do senso comum. Ora, se na esfera pessoal, de cada um de nós, as respostas se encontram em lugares que irão nos ajudar a re-elaborar a forma como pensamos, agimos e sentimos, na esfera social, nós todos conseguimos em conjunto sair do senso comum por meio do conhecimento especializado, em que se destacam a Filosofia e a Ciência.

No caso da Ciência, mais especificamente, desde seu início há pouco mais de quatro séculos, ela tem como tarefa principal exercer o permanente questionamento constante no âmbito coletivo e social e buscar respostas, causas e motivos que expliquem o que é o mundo e como o mundo funciona.


Entender que a “Educação é uma casa” é exercitar o senso comum


Se por um lado, não faz sentido emitir opinião sobre um assunto que não conhecemos, por outro lado, é até natural nós pensarmos assim de forma simplória, pois com isso a nossa capacidade de entender como as coisas funcionam, junto com a nossa habilidade para resolver problemas, passa a fazer sentido para nós mesmos e assim nos justificamos. Afinal, dá um sentimento muito ruim saber que, na verdade, nós não entendemos nada de um assunto que impacta a nossa vida com tanta força.

Com isso, passamos a perceber como que frases prontas são, na verdade, o inverso de uma solução. Vamos tomar aqui como exemplo uma dessas frases, que inclusive até deu o título deste artigo: “a Educação é uma casa”.

Essa frase de efeito pressupõe a seguinte analogia: ninguém começa a construir uma casa pelo telhado; o jeito certo de começar é pelo alicerce, depois subir as paredes, e o telhado é a última parte. Da mesma forma, a Educação é dividida em básica, secundária (ensino médio) e terciária (universidade). Assim, o investimento deve ser todo feito na educação básica – o dito “alicerce” da educação -, pois é somente sobre uma base sólida que se podem erguer paredes e por fim o telhado.

Quando praticamos o exercício de distanciamento do senso comum, percebemos que essa frase de efeito não faz sentido. Para começar, a analogia não é válida; e não só do ponto de vista da Educação, mas da casa também. Afinal de contas, sabemos que a construção da casa definitivamente não começa pela base. Antes mesmo do primeiro tijolo, foi preciso: juntar o dinheiro do projeto; desenhar a planta da casa; contratar os profissionais para trabalhar na obra; comprar os materiais de construção, medir o terreno… Quando, por fim, chegamos ao ponto de começar a casa pela base, um trabalho muito grande já foi feito antes.

No caso da Educação, que é inúmeras vezes mais complexa que a casa, a parte do planejamento envolve muitas mais etapas. Por isso, a analogia com a casa perde seu sentido. Se a educação é a casa, quem são os alunos? E os professores? Quem é a parede? Quem vai morar nessa casa? Quem é o pedreiro? E o tijolo? Enfim, nada faz muito sentido.

Além do mais, as pessoas que educam as crianças na educação básica (educadoras, pedagogas, professoras, etc.) precisam ter se formado na Universidade e é fundamental que tenham tido uma educação de qualidade no nível terciário (no dito “telhado”). Desse ponto de vista, sem o telhado não é possível construir a base. Então, no caso da Educação, seria importante começar primeiro pelo telhado?

É sempre bom repetir: não é apenas “a Educação é uma casa” uma frase de efeito do senso comum que não contribui com o tema, mas todas as outras que são, com efeito, a manutenção ou mesmo a piora dos problemas. Isso porque não partem de uma reflexão, nem de um questionamento sobre a forma como o mundo (no caso, o ‘mundo educacional’) funciona, nem de uma revisão dos nossos valores e afetos. Nem de longe passam pela análise científica sobre a Educação. Ao contrário, são a mera substituição de uma frase de efeito do senso comum por outra.


Como a Ciência Linguística pode ajudar nesse processo?


Do ponto de vista da Ciência Linguística, a Educação pode ser entendida como um processo de aprender a falar. É por meio da Educação que as pessoas passam de “animais” para “membros da sociedade”. E essa passagem de “seres humanos” para se tornarem “pessoas” acontece porque aprendem a falar.

Mas atenção: para uma pessoa se tornar falante de uma língua, não basta apenas “saber dizer as palavras” nessa língua. Aprender a falar uma língua é um processo muito mais complexo. Esse processo inclui a forma pela qual nós, seres humanos, entendemos como o mundo funciona e a forma como nós nos relacionamos uns com os outros.

Na qualidade de espécie, nós humanos somos parte do mundo animal. Isso significa que a nossa configuração biológica carece de alimento, abrigo, segurança e convivência em grupo. Ainda, faz parte da nossa espécie estabelecer uma relação com o tempo em que conseguimos registrar os acontecimentos do passado e com isso construir uma memória coletiva que preserva e acumula conhecimentos.

Da mesma forma, aponta para o futuro prevendo, planejando e realizando projetos que podem garantir a nossa sobrevivência, tais como conseguir alimento, construir abrigo e manter as relações com as outras pessoas. Nesse sentido, a nossa biologia determina apenas parcialmente o que nós seres humanos somos, uma vez que essa nossa biologia está mergulhada no nosso mundo social e na história.

A conformação da nossa biologia [feita pela sociedade [feita pela história]] é estudada pela Ciência Linguística em um campo relacionado à antropologia e à sociologia que se chama Abordagem Linguística Funcional. Essa abordagem é a forma como a Linguística pode contribuir para sairmos do senso comum quando tentamos explicar porque nós seres humanos usamos a língua da forma como usamos – o que, relativamente ao nosso assunto principal, contribui para entendermos o que significa ‘Educação’.

Para a Abordagem Linguística Funcional – também denominada Funcionalismo – o uso da língua tem o papel de modelar simbolicamente a vida humana. A modelagem simbólica quer dizer dar um significado para as necessidades biológicas típicas da nossa espécie animal. Então, ‘reprodução’ passa a ter o significado de ‘casamento’; ‘um bando de gente’ passa a ter o significado de ‘família’; ‘alimentação’ passa a ter o significado de ‘almoço de domingo’, e assim sucessivamente.

Vamos ver alguns exemplos de como isso acontece nos excertos apresentados a seguir. Todos são sobre ‘mandioca’ e se referem à alimentação:

TEXTO 1 – PROCEDIMENTO (www.panelinha.com.br)

Corte a mandioca em fatias de 8 cm, descasque, lave e coloque numa panela média. Cubra com água, leve ao fogo médio e deixe cozinhar por cerca de 15 minutos, até ficarem levemente cozidas. Passe a mandioca pela parte fina do ralador e transfira para uma tigela rasa (ou prato fundo grande). Acrescente a manteiga, tempere com ½ colher (chá) de sal e misture, amassando com um garfo até formar um purê firme, no ponto de modelar as arepas – se necessário regue com um pouco da água do cozimento. Se preferir, você pode terminar de amassar com as mãos. Leve uma frigideira grande antiaderente ao fogo médio para aquecer. Regue com 1 colher (chá) de azeite e coloque quantas arepas couberem, uma ao lado da outra. Deixe dourar por cerca de 3 minutos de cada lado.

TEXTO 2 – BATE-PAPO (www.youtube.com)

Falante 1: HUUUUU QUE DELICIA VOU FAZE OBRIGADO POR POSTA ESTA DELICIA QUE DEUS TE ABENÇOE UM BOM DIA  ATODOS UM ABRAÇO

Falante 2: Que bom que você gostou amiga ! Ótima semana pra você também !????

Falante 3: Vou fazer essa torta de mandioca

Falante 4: Gostei e  fácil de fazer hummm delícia. Menina o que é isso simplesmente maravilhoso uauuu

Falante 5: É uma delicia hein. Um ótimo final de semana que Deus abençoe grandemente ??

TEXTO 3 – DESCRIÇÃO (GOMES, 2010, p. 19)

As raízes de mandioca são extremamente ricas em carboidratos, sendo que cerca de 80 a 90% de sua massa seca correspondem a este nutriente (MONTAGNAC, DAVIS, TANUMIHARDJO, 2009a). Do total de carboidratos, aproximadamente 80% é amido (GIL & BUITRAGO, 2002), principalmente na forma de amilose e amilopectina. Cerca de 17% corresponde a sacarose, enquanto que pequenas quantidades de frutose e dextrose também podem ser encontradas (CHARLES, SRIROTH, HUANG, 2005). O conteúdo lipídico é baixo, apenas 0,5% (OKIGBO, 1980), sendo que os ácidos graxos mais abundantes são o palmitato e o oleato (HUDSON & OGUNSUA 1974).

TEXTO 4 – ARGUMENTAÇÃO (VASCONCELOS; CARMO; OLIVEIRA, 2015)

O entendimento dos mecanismos genéticos relacionados ao acúmulo de amido e direcionamento dos seus componentes podem ser úteis para a orientação dos cruzamentos para obtenção de variedades de mandioca com amidos diferenciados ou com maior teor de matéria seca. O polimorfismo molecular pode ser associado a características fenotípicas resultante dos efeitos de genes da rota metabólica do amido. (…) Para o desenho dos iniciadores por meio de PCR ( Polymerase Chain Reaction) específica, foram selecionados 10 genes da rota metabólica do amido, obtidos no banco de dados NCBI (National Center for Biotechnology Information). Para a otimização dos iniciadores, foram utilizados DNA genômico de 9 6 acessos de mandioca pertencentes ao Banco Ativo de Germoplasma de Mandioca (BAG-Mandioca), fenotipicamente contrastantes para o teor de amido nas raízes.

Apesar de todos os textos tratarem do mesmo tema, ‘mandioca’, o jeito de cada texto dá um significado diferente para esse alimento. O texto 1 é um procedimento que está relacionado à nossa necessidade biológica por alimentação. Nele, a ‘mandioca’ e um ingrediente de receita.

O texto 2 é um bate-papo que está relacionado à nossa necessidade biológica de nos relacionarmos com outras pessoas. Nele, a ‘mandioca’ é o tema que as pessoas escolheram para expressar amizade umas pelas outras. O texto 3 é uma descrição e está relacionado à nossa necessidade de explicar a realidade em que vivemos. No texto 3, ‘mandioca’ é o objeto de investigação de uma pesquisa sobre nutrição. Por fim, o texto 4 é uma argumentação e se relaciona à nossa necessidade de testar hipóteses sobre como o mundo funciona. Nesse texto, ‘mandioca’ é parte de um tema a ser debatido e o local onde se encontram determinadas reações bioquímicas.

Apesar de nesses quatro textos o objeto real ser o mesmo (a mandioca), em cada um deles esse “objeto do mundo real” é simbolizado por meio de textos (no caso: procedimento, bate-papo, descrição e argumentação) e passa a ter significados diferentes. A Cultura, então, pode ser definida como um sistema simbólico que condiciona os seres humanos, transformando animais em pessoas, e seres vivos em falantes, dando a cada um de nós um lugar na sociedade, de uma determinada cultura, em um período histórico determinado.

É nesse sentido da capacidade de simbolizar objetos por meio de textos que estamos entendendo o termo ‘falante’. E é por esse motivo que dizemos que ‘falar’ significa ‘entender como o mundo funciona’ e, quanto mais nos tornamos falantes, mais nos tornamos membros ativos da nossa sociedade.

Diante desse cenário, a Língua tem um papel crucial a desempenhar na modelagem simbólica. É através da língua que a cultura condiciona os seres humanos. Assim, ‘educar’ significa ‘ensinar a língua’; não apenas no sentido de “ensinar a falar as palavras”, mas no sentido de “aprender a modelar simbolicamente o mundo em que vivemos”.

A Educação se torna, por consequência, a responsável por ensinar às gerações futuras os meios de sobrevivência de uma determinada sociedade, assim como ensinar os códigos de valores, as crenças, tais como respeito, pecado, preconceito, amor e assim por diante. Sem a língua, é impossível que o processo de educar aconteça. Isso porque é papel da língua criar os símbolos do grupo social, assim como de organizar as instituições, criar os textos que organizam a sociedade, armazenar o conhecimento e a memória do grupo nos textos, que depois vão ser, por meio da Educação, ensinados e compartilhados entre os membros desse grupo social.


Vai um Linguista aí?


Se por um lado todos os membros de uma sociedade passaram pela transformação de simples seres biológicos a falantes, por outro lado esse processo não é igual para todos. Existem diversas formas como as sociedades dividem os seus membros, que pode ser pelo trabalho, sexo, idade, classe, raça e assim por diante. O acesso à língua é também determinado por essas divisões. Assim, pessoas de sexo, idade, classe, raça etc. diferentes vão falar de forma diferente.

Contudo, o problema surge quando uma determinada parte da língua não está acessível a todas as pessoas. Se educar significa ensinar a falar, e falar é a forma como nós humanos conseguimos ter sucesso na sobrevivência (alimento, abrigo, etc.); então não dar acesso à educação é uma forma de diminuir a chance das pessoas de viver porque é também diminuir a sua chance de falar. A Educação no Brasil, deste ponto de vista, parece ser uma forma de manter essas diferenças e controlar o acesso – como vemos por exemplo nos dados do IBGE.

A forma como a Ciência Linguística nos ajuda é fazendo pesquisas que gerem conhecimento para que o acesso à educação possa ser cada vez mais fácil para parcelas crescentes da população. Como exemplo, podemos citar uma área de pesquisa que se aplica diretamente à Educação é chamada de Pedagogia de Gêneros. Para um maior detalhamento sobre a Pedagogia de Gêneros, e um complemento a este artigo, temos um outro artigo tratando especificamente sobre esse tema, que pode ser acessado pelo LINK.


Como fazer para não repetir os argumentos do senso comum?


Como foi mencionado anteriormente, o que nos ajuda a não ficar presos ao senso comum é o permanente questionamento constante sobre os temas que consideramos importantes, pois assim seguimos sempre questionando argumentos que não são verdadeiros, ou são superficiais, ou ainda reforçam um pensamento do senso comum.

Socialmente, vimos também que a Ciência pode nos ajudar nesse processo porque é papel dela justamente questionar permanentemente qualquer conhecimento de forma a testar o tanto que esse conhecimento é realmente válido. A Ciência Linguística também faz parte desse esforço.

No caso do tema ‘Educação no Brasil’, a Ciência Linguística pode nos ajudar a não cair no senso comum porque ela nos mostra que ‘educar’ significa ‘ensinar a falar’; e que ‘falar’ significa ‘entender como a nossa cultura simboliza o mundo natural’.

Portanto, quando nos depararmos com argumentos do tipo: “A educação é um direito de todos. A educação tem que ser inclusiva. A educação deve ser pública, gratuita e de qualidade. A educação é um dever do Estado. A educação é a garantia de um futuro melhor, etc…”, de acordo com a Ciência Linguística, devemos nos perguntar se esse tipo de argumento irá:

– ajudar as pessoas a se tornarem falantes melhores?

– considerar o jeito que a nossa cultura simboliza o mundo e esse jeito será contemplado pelo projeto para a educação?

– levar em conta que a educação tem como base os textos, pois os textos são a forma simbólica de como as pessoas vivem no mundo?

– ensinar uma grande diversidade de textos, pois é essa diversidade que ajuda as pessoas a se tornarem falantes melhores?


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