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O que quer dizer quando a gente diz o que a gente quer dizer?

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Vamos começar imaginando algumas ocasiões da nossa vida que são muito importantes:

  • pedir à professora para mudar a nossa nota final;
  • participar de uma entrevista de emprego;
  • escrever uma redação para um concurso;
  • discutir a relação com a namorada ou namorado.

Em todas essas ocasiões, saber exatamente o que dizer faz toda a diferença, e a escolha das palavras (ou melhor, a escolha de cada palavra) torna-se muito relevante.

Se nós fizermos agora um pequeno exercício de recordar uma ocasião importante, como fazer a prova, a entrevista de emprego, prestar um concurso, ou discutir um problema no relacionamento afetivo, vamos lembrar que é muito comum, antes dessa ocasião importante acontecer, ensaiarmos o que vamos dizer; é como se estivéssemos “escrevendo um rascunho na nossa cabeça”.

Além disso, durante a prova, a entrevista, ou a discussão, enquanto estamos falando ou escrevendo, tendemos a fazer pequenas pausas, que servem para repensar rapidamente o que estamos falando. E isso nos ajuda a escolher uma linha de raciocínio mais certa, as palavras mais exatas, e o tom de voz mais preciso.

Figura 1 – Na escrita é mais fácil perceber as pausas porque elas são mais longas, e sempre dá para deletar e começar de novo, corrigir e reescrever o texto.

No fim das contas, todo esse nosso exercício de planejar, ensaiar e corrigir a nossa fala e a nossa escrita tem um motivo muito importante:

O que todos nós queremos é usar a língua para dizer exatamente o que a gente quer dizer!

Da mesma forma, todos nós já passamos, pelo menos uma vez, por uma ocasião difícil ou constrangedora em que falamos uma coisa, mas as pessoas entenderam outra completamente diferente.

De repente, o rumo da conversa foge ao nosso controle e não conseguimos resolver o problema. Então:

  • Na hora de reclamar da nota com a professora, se o tom da voz aumentar, ela pode achar que a gente só está querendo arrumar confusão, e assim não mudar a nota.
  • Na entrevista de emprego, falhamos em demonstrar que temos o perfil para a vaga por não acompanhar a linha de raciocínio da entrevista.
  • Na redação para o concurso, esquecemos de relacioná-la com o texto de apoio, e a examinadora certamente irá descontar muitos pontos.
  • No relacionamento afetivo, a gente diz que o namorado nunca liga. Mas de repente ele lembra de uma única vez que ligou. E aí a discussão só piora, porque agora, além de tudo, a gente “fica é inventando mentira”.

Mas, por que será que essas coisas acontecem?

Por que será que se a gente usa a linguagem mais adequada, a chance de conseguir o que queremos na vida é grande?

Por outro lado, por que às vezes a gente tem certeza que diz uma coisa, mas as pessoas entendem outra?

Por que uma palavra certa pode mudar tudo a nosso favor, mas uma palavra errada pode colocar tudo a perder?

Afinal, qual é o verdadeiro sentido do que a gente diz?


Dois lados da questão: o lado de quem fala, e o de quem escuta


Em Linguística, utilizamos um termo técnico para representar a pessoa que fala, que é falante’ ou ‘emissor’. Da mesma forma, utilizamos também um termo para representar quem escuta, que é ‘ouvinte’ ou ‘receptor’. Falante (ou emissor) junto com ouvinte (ou receptor) são os interlocutores.

Do ponto de vista do uso da língua, quando buscamos uma resposta para perguntas como “qual é o verdadeiro sentido do que a gente diz?”, podemos pensar nos dois lados da questão: o lado de quem fala e o lado de quem escuta.

Do lado do falante, o que nos orienta é a pergunta:

“o que podemos fazer para dizer sempre o que a gente quer dizer?”

Já do lado do ouvinte, o que nos orienta é a pergunta:

“por que as pessoas às vezes entendem certo, mas outras vezes entendem errado o que a gente fala?”


O que dizem as evidências linguísticas?


Vamos examinar alguns exemplos em que existe uma diferença entre ‘o que a gente quer dizer’ e ‘o que as pessoas entendem quando a gente fala’. Os exemplos são excertos de transcrições retiradas do CALIBRA[1] [LINK].

Para entender melhor cada um destes exemplos, vamos tentar responder às seguintes perguntas: o que os falantes quiseram dizer? O que os ouvintes entenderam? Onde está o problema na comunicação?

TEXTO 1 – provocação / diálogo / falado / duas amigas conversando ao telefone
MARIA 1: Alô, quem está falando?
PAULINA 2: Adivinha? Tem muito tempo que a gente não se fala. Será que você já esqueceu?
MARIA 1: Ana?
PAULINA 2: Ah? Eu acho que você já se esqueceu…
MARIA 1: Ah, já sei, Paulina? A minha avó disse que você iria ligar.
PAULINA 2: Aaah… era pra ser surpresa…

No TEXTO 1, a Paulina ligou para uma amiga que não encontrava há muito tempo. Só que a amiga, Maria, não estava e a avó da Maria que atendeu. A Paulina pediu para a avó não contar que ligou para a Maria porque queria fazer surpresa. Só que a avó deu o recado assim mesmo (problema 1). Quando a Paulina ligou novamente, primeiro a Maria não reconheceu a voz dela e disse que era outra pessoa (problema 2). Depois, quando a Maria descobriu que era a Paulina, revelou que a avó tinha estragado a surpresa (problema 3).

Nessa interação, o que parece ter faltado à Maria foi entender o gênero: a Paulina provavelmente pensou que, como as duas não se encontravam há muito tempo, seria bom ligar e fazer uma surpresa para a amiga. Nesse caso, o gênero escolhido foi o que chamamos de conversa cotidiana: provocação.

A conversa cotidiana, é uma família de gêneros que, de uma forma geral, tem a função social de criar laços entre as pessoas e compartilhar sentimentos, valores, história de vida, experiências, problemas e afetos. Assim, compete à conversa cotidiana estreitar as relações pessoais dos grupos, de coleguismo, de amizade e de amor.

Um dos gêneros da família de conversa cotidiana é a ‘provocação’. O gênero ‘provocação’ tem, assim como os outros da família, também a função de estreitar as relações pessoais. Contudo, isso é feito de uma forma diferente, por meio de “falar mal de brincadeira, criticar ou enganar os nossos amigos”. De alguma forma, essas provocações possuem o efeito de estreitar os laços entre as pessoas (eu me recordo de quando era criança, tinha um grupo de amigos em que o cumprimento entre os membros era um dizer: “oi cachorro sarnento”, e o outro responder: “oi porco lazarento”. De alguma forma, esse tipo de “agressão provocativa” estreitava os laços de amizade no grupo).

No caso do TEXTO 1 o que a Maria não entendeu foi o gênero conversa cotidiana: provocação, por meio de ‘renovar a amizade através de uma surpresa’. Como forma da provocação, a Paulina queria “enganar a amiga”. Mas a Maria, primeiramente, confundiu a Paulina com outra pessoa (“Ana?”); depois, estragou a surpresa (“A minha avó disse que você iria ligar”). Com isto acabou frustrando o gesto da Paulina (“Aaah… era pra ser surpresa”).

TEXTO 2 – argumentação / diálogo / falado / aula na faculdade de direito
PROFESSOR: Nós vamos estudar a teoria do delito e nós vamos estudar a teoria com base no conceito analítico de crime, que eu já falei para vocês aqui qual é o… você grava as minhas aulas, é?
ALUNO: Gravo.
PROFESSOR: Com autorização de quem? Agora é que eu descobri que você grava as aulas.
ALUNO: Todas as aulas.
PROFESSOR: Eu não autorizo gravação de aula, não.
ALUNO: Não, autoriza sim. Isso aí é só para…
PROFESSOR: É?
ALUNO: …tirar dúvidas.
PROFESSOR: Isso aí compromete a gente.
ALUNO: Não…
PROFESSOR: Quê que você faz com isso? Chega em casa fica rindo de mim?
ALUNO: Não, professor.

No TEXTO 2, o aluno gosta de gravar as aulas para depois ouvir a gravação e tirar dúvidas. Mas o que o professor entendeu é que a gravação das aulas poderia comprometer e que depois os alunos ouviam a gravação para rir dele.

Nessa interação, o problema está relacionado ao registro: o professor, ao perceber que o aluno gravava as aulas, já decidiu de antemão que não iria permitir aquilo e não se mostrou aberto a ouvir o ponto de vista do aluno.

O registro é o estrato do contexto que responde, dentre outras coisas, pelo tipo de relação entre os falantes – se existe hierarquia no status ou proximidade no contato entre eles. A essa variável do registro damos o nome de sintonia.

Assim, quando interagimos com outras pessoas, devemos levar em consideração qual é sintonia com os nossos interlocutores. Em outras palavras, devemos considerar a se o status é de hierarquia entre nós e nosso interlocutor – se o nosso interlocutor está com status acima, no mesmo nível, ou abaixo de nós na hierarquia. Da mesma forma, devemos levar em conta a proximidade no contato – se o nosso interlocutor é próximo de nós, ou distante, ou se a nossa relação é neutra.

Por exemplo, a relação entre mãe e filha pequena que vivem em uma mesma casa é, em termos da sintonia, hierárquica em termos de status, com a mãe acima e a filha abaixo; e também é próxima no contato, porque compartilham muitos momentos, experiências, afetos e problemas diariamente.

No caso da relação entre amigas de infância não possui hierarquia, pois estão no mesmo nível de status; e é próxima no contato, pois compartilham muitas experiências, valores e afetos ao longo de suas vidas.

Já a relação entre professora e aluna é, em termos do registro do contexto, hierárquica, com a professora acima e a aluna abaixo no status. Em termos de proximidade ela é distante no contato.

Figura 2 – Componentes da variável sintonia do registro.

Para o TEXTO 2, o aluno não conseguiu abrir nenhum espaço na conversa para expor seu ponto de vista. É como se o aluno estivesse tentando falar de um assunto que ele não conhece. Nesse caso, o que faltou ao aluno foi entender a sintonia do registro e dominar o contexto de ‘como negociar com o professor, que tem status acima de mim’. Assim, parece que a conversa não é uma conversa de verdade. O professor está falando de um assunto, e o aluno está tentado falar de outro. O professor está exercendo sua hierarquia, ao passo que o aluno está tentando explicar outra coisa diferente, o motivo de por que gravar aulas é bom.

É curioso que, se nós tirarmos a fala do aluno, a fala do professor sozinha praticamente faz sentido – ele o tempo todo estabelece sua posição hierárquica na sintonia.

PROFESSOR: Você grava as minhas aulas, é? Com autorização de quem? Agora é que eu descobri que você grava as aulas. Eu não autorizo gravação de aula, não. É? Isso aí compromete a gente. Quê que você faz com isso? Chega em casa fica rindo de mim?

Já a do aluno, é uma coleção de hesitações, que não tratam da hierarquia – o assunto que deveria estar em questão:

ALUNO: Gravo. Todas as aulas. Não, autoriza sim. Isso aí é só para… tirar dúvidas. Não… Não, professor.

TEXTO 3 – discussão / diálogo / falado / debate sobre a legalização das drogas
DEBATEDOR 1: Voltando um pouco a pergunta do Sérgio, eu sou a favor de uma revisão geral das drogas. Acho que a  maconha, pelas características da substância, ela talvez ela seja um primeiro, porque no caso dela a proibição parece ainda mais absurda, né–
DEBATEDOR 2: Absurda por quê? É isso que nós precisamos explicar, absurda por quê?

No TEXTO 3, o Debatedor 1 acredita que o caso da proibição da maconha parece absurdo, e o jeito que ele fala dá a entender que todos os outros debatedores têm a mesma opinião. Acontece que o Debatedor 2 não tem esta opinião; ele não acha que o caso da proibição da maconha seja um absurdo. Então, assim que o Debatedor 1 utiliza a palavra ‘absurda’, o Debatedor 2 mal espera ele acabar de falar, já toma a palavra e questiona.

Nessa interação, o problema se relaciona ao discurso, mas especificamente à avaliação: apesar de a palavra ‘absurda’ parecer ser apenas mais uma palavra, ela realiza um significado avaliativo – mais precisamente chamado de apreciação – alto e, por isso, geralmente é usada se todos os falantes estiverem de comum acordo com a avaliação. Quando o Debatedor 1 disse “a proibição parece ainda mais absurda”, esqueceu que nem todo mundo tem essa mesma opinião.

Uma vez que a situação envolve um debate, o Debatedor 2 possuía uma opinião diferente, e por isto ele imediatamente tomou a palavra para corrigir o Debatedor 1. Nesse momento, o que passou a ser negociado não é mais o uso de drogas, a liberação, nem a proibição, mas exatamente a avaliação (errada) que o Debatedor 1 fez da palavra ‘absurda’.

TEXTO 4 – discussão / falado / trabalho de genética para a escola
COLEGA 1: A gente não sabe o quê? XY.
COLEGA 2:  A gente não sabe o quê…
COLEGA 1:  Se ele teve filho… se ele teve filha.
COLEGA 2: Peraí–
COLEGA 1: Ah não, não é filh–
COLEGA 2: Se o casal é normal pra hemofilia, então o do homem não tem agazinho, não? No X?
COLEGA 1: O homem é agazão, então.
COLEGA 2: Como que cê sabe?
COLEGA 1: Porque ele é normal.
COLEGA 2: Ah! Ele é normal significa que ele não tem?
COLEGA 1: Não tem.
COLEGA 2: Ah, tá.

Por fim, no TEXTO 4, o Colega 2 não conhece o conceito de ‘normal para hemofilia’ e por isso não entende quando o Colega 1 disse: “O homem é agazão, então”. Como forma de explicar, o Colega 1 liga o fato de o homem ser agazão ao conceito de ‘normal’ em genética. O Colega 2, parece então ter compreendido a relação e testa a hipótese pedindo a confirmação: “Ah! Ele é normal significa que ele não tem?”. A confirmação, por fim é dada pelo Colega 1: “Não tem”.

É interessante observar que esse texto é o único em que os interlocutores (isto é, falante e ouvinte) conseguiram se acertar, e chegaram a ponto em comum entre ‘o que a gente quer dizer’ e  ‘o que as pessoas entendem quando a gente fala’.

Nessa interação, a solução do problema está relacionada à gramática; mais especificamente a uma estrutura gramatical denominada identificação. Sempre quando explicamos alguma coisa, organizamos a língua da seguinte forma:

Normalsignificaque ele não tem.
Elemento que queremos explicarpalavra ou grupo de palavras que indica igualdadeexplicação
QUADRO 1 – Exemplo de Identificação

Nós selecionamos o elemento que queremos explicar (no caso do TEXTO 4 foi ‘normal pra hemofilia’) e uma explicação ou definição para este elemento (‘ele não tem’). Em seguida, colocamos o elemento que queremos explicar e a explicação em uma mesma oração, ligados por uma palavra, ou grupo de palavras, que indica igualdade.

Os textos apresentados aqui ilustram como os problemas com o que dizemos podem ser de diferentes tipos e acontecem nos diferentes estratos da língua, que nos casos aqui ilustrados vão desde a gramática até o gênero.

Figura 3 – A estratificação do sistema linguístico e os problemas dos textos de 1 a 4.


O sentido do que a gente diz se relaciona aos itens linguísticos e ao significado que eles possuem


É verdade que, no nosso dia-a-dia, praticamente tudo o que dizemos é sempre entendido, ou quase sempre, pelas outras pessoas. Em certa medida, isso é porque as nossas atividades do dia-a-dia envolvem situações antigas que se repetem constantemente. Quase todos os dias fazemos as mesmas atividades na nossa casa, na escola, ou no trabalho; conversamos sempre dos mesmos assuntos, em geral com as mesmas pessoas. Assim, “treinamos” todos os dias em usar a língua necessária nessas situações e por isto adquirimos muita prática.

Contudo, basta aparecer uma ocasião nova, ou de importância maior (como a prova, ou a entrevista de emprego) para percebermos como é importante organizar a fala, e como é complexo o caminho entre o que é dito e o que é compreendido.

Os exemplos (TEXTOS 1 a 4) que foram apresentados anteriormente mostram bem como o significado do que a gente diz envolve diferentes variáveis, que estão relacionadas com o gênero, com o registro, com o discurso e com a gramática. E todas criam o significado do que a gente fala e determinam a forma como as partes da língua são escolhidas e organizadas.

Para a Ciência que estuda a Língua – a Linguística – o sentido do que a gente diz se relaciona (1) aos itens linguísticos e (2) ao significado que a organização dos itens linguísticos cria.

A seguir, vamos detalhar um pouco mais os itens linguísticos da gramática como forma de ilustrar o jeito que a organização da língua está ligada ao que dizemos e o que é compreendido pelos nossos interlocutores.


Os itens linguísticos (na gramática)


Por item linguístico, entendemos qualquer parte da língua que possui alguma forma de organização. Da mesma maneira, por item linguístico gramatical, entendemos qualquer parte da gramática que possui organização. ‘Item linguístico’ é, portanto, um termo geral que inclui as classes, os sistemas e as estruturas da língua.

Se tomarmos como exemplo a primeira vez que a Paulina fala com a Maria no TEXTO 1, podemos dividir a fala dela de diferentes formas e, assim, observar como os “pedaços que nós dividimos” (ou segmentos) são organizados (ver Quadro 2).

segmentaçãoexemplo
1.Tem muito tempo  |  que a gente não se fala
2.Tem  |  muito tempo  |  que  |  a gente  |  não  |  se fala
3.Tem  |  muito  |  tempo  |  que  |  a  |  gente  |  não  |  se  |  fala
4.Te |  m  |  muit |  o  |  temp |  o  |  que  |  a  |  gent |  e  |  não  |  se  |  fal |  a
QUADRO 2 – As diferentes formas de “dividir em pedaços” (segmentação) de “tem muito tempo que a gente não se fala”

Como mostra o Quadro 2, podemos segmentar a língua de diferentes maneiras. No caso, a segmentação foi feita conforme as classes dos itens linguísticos.

  • Em 1, a fala da Paulina foi classificada conforme as orações, formando assim dois segmentos.
  • Em 2, a mesma fala foi classificada de forma diferente, e o resultado foram seis segmentos da classe do grupo.
  • Já em 3, a fala foi classificada segundo as classes de palavras, resultando em nove segmentos.
  • Por fim, em 4, foi classificada em morfemas, totalizando quatorze segmentos.

A partir das informações do Quadro 1, podemos fazer as seguintes considerações:

a) os itens linguísticos podem ser de segmentos diferentes. Os segmentos variam de acordo com a forma que nós os segmentamos. No caso da gramática, se utilizamos a classificação para separar os itens linguísticos, estes então irão variar segundo as classes (de morfema, palavra, grupo ou oração).

b) dois itens linguísticos podem ter a mesma forma. Mas, como a segmentação que deu origem  a eles é diferente, a forma de organização é diferente, e os itens também são diferentes. Por exemplo, ‘tem’ pode ser classificado como um grupo de palavras (contendo uma palavra só), ou ‘tem’ pode ser classificado como uma palavra.

c) cada item linguístico possui o seu lugar no todo, e esse lugar determina a forma como o item linguístico está organizado (ver Quadro 3). Dependendo da forma como nós classificamos os itens linguísticos da gramática, então eles são organizados segundo diferentes classes.

classificaçãoexemplo
1. classe de oraçõesoração principal  |  oração dependente
2. classe de grupos de palavrasgrupo verbal  |  grupo nominal  |  grupo conjuntivo  |  grupo nominal  |  grupo adverbial  |  grupo verbal
3. classe de palavrasverbo  |  adjetivo  |  substantivo  |  conjunção  |  artigo  |  substantivo  |  advérbio  |  partícula  |  verbo
4. classe de morfemasradical |  desinência  |  radical |  desinência  |  radical |  desinência  |  que  |  a  |  radical |  desinência  |  não  |  se  |  radical |  desinência
QUADRO 3 – As diferentes formas de classificar a fala “tem muito tempo que a gente não se fala” de acordo com o lugar dos itens linguísticos

O Quadro 3 complementa o Quadro 2, e juntos eles nos permitem ver que a maneira como “dividimos a língua em pedaços” nos dá diferentes tipos de classes de itens linguísticos.

Eles permitem também entender que cada item linguístico ocupa um lugar específico, e que o lugar que o item linguístico ocupa mostra a forma como ele está organizado.

Por exemplo, o item linguístico ‘muito tempo’, ocupa um lugar em uma classe chamada ‘grupo de palavras’. Assim, podemos dizer que o item ‘muito tempo’ está organizado como um grupo. Como ele é composto por palavras nominais – o adjetivo ‘muito’ e o substantivo ‘tempo’ – podemos dizer, mais especificamente, que ele está organizado como um grupo nominal.

Por outro lado, se “dividirmos a língua em pedaços” sem observar a organização, por exemplo ‘tempo que a’, ‘gente-se’, ‘otemp’, ou ainda ‘nte’, não podemos considerar que estes “pedaços” são itens linguísticos porque não pertencem a nenhuma classe.

‘Muito tempo’ pode ser explicado como sendo ‘uma quantidade de tempo considerada longa pelo falante’; ‘se fala’ é ‘o ato de duas pessoas se comunicarem verbalmente’, e assim por diante. Agora, ‘tempo que a’ é o quê? E ‘gente-se’ pode ser explicado como sendo o quê? E o que quer dizer ‘otemp’? Ou então ‘nte’?

Isto acontece porque esses últimos não podem ser organizados para funcionar na língua. Apesar de parecer, o pedaço ‘tempo que a’ não é um grupo; ‘gente-se’ ou ‘otemp’ não são palavras, nem ‘nte’ é um morfema. Como esses pedaços não podem ser organizados, eles não são itens linguísticos, não são classificados, e por isso não fazem sentido.


A realização do texto pelos itens linguístico gramaticais


Em Linguística, o conceito de ‘realizar quer dizer: ‘tornar real, produzir, fazer surgir, fazer acontecer’. Se examinarmos qualquer texto, vamos ver que ele é o resultado de um conjunto de itens linguísticos organizados de uma determinada forma. Por isso, podemos dizer que a função dos itens linguísticos é realizar (isto é: tornar real, produzir) o texto.

Porém, não é qualquer item linguístico que serve para realizar qualquer texto. Cada item linguístico selecionado para ajudar na realização do texto deve fazer a sua parte para que o texto tenha sentido.

Quando ouvimos ou lemos um texto, e conseguimos entender, é porque aquele texto faz sentido. E o significado que faz sentido para nós só “aparece” quando os “itens linguísticos certos” são usados para realizar o “texto certo”.

Vamos olhar isso melhor no TEXTO 6:

Na nossa língua, costumamos dar o nome de ‘lista de ingredientes da receita’ para o TEXTO 6. A lista, por sua vez, é realizada por itens linguísticos que são grupos nominais. E esses grupos nominais são organizados da seguinte forma:

  • Primeiro, vem uma quantidade (que na gramática tem a função de Numerativo).
  • Depois vem um ingrediente (que na gramática tem função de Ente).
  • Por fim vem uma classe de ingrediente ou uma qualidade do ingrediente (que na gramática tem função de Classificador ou Qualificador).

Na estrutura desse grupo nominal da lista, a quantidade é seguida pelo ingrediente que é seguido pela qualidade. Na notação linguística, utilizamos o símbolo ‘^’ para indicar que um item segue outro. Então:

Quantidade ^ Ingrediente ^ Classe ou Qualidade;

Numerativo ^ Ente ^ Classificador ou Qualificador

A Quantidade se refere a uma medida do Ingrediente. Já a Classe e a Qualidade dão uma explicação do ingrediente quando é preciso; quando não é preciso, a forma do grupo nominal fica apenas Quantidade ^ Ingrediente (ver Quadro 5).

grupo nominal típico das receitas
Quantidade NumerativoIngrediente EnteClasse ou Qualidade Classificador ou Qualificador
1 Kg defarinhade trigo
5 g deaçúcar(de confeiteiro, mascavo, etc.)
20 g desal(grosso, marinho, etc.)
30 g defermentofresco
1ovo(de codorna, caipira, etc.)
200 ml deleite(de cabra, quente, etc.)
QUADRO 5 – Organização dos itens linguísticos que realizam o texto da lista de ingredientes.

Se o significado é o resultado de “itens linguísticos certos” que realizam o “texto certo” para uma situação, então podemos dizer que: os itens linguísticos grupos nominais de forma Quantidade ^ Ingrediente ^ Qualidade realizam o texto da lista de ingredientes.

FIGURA 5 – Realização do texto da lista pela gramática no TEXTO 6

O que a FIGURA 5 nos mostra é que:

(1) uma porção de grupos nominais colocados um embaixo do outro, (2) o texto de uma lista de ingredientes são, na verdade, a mesma coisa. O que existe de diferente entre os itens gramaticais e o texto é o nosso ponto de vista.

Na análise da Linguística, podemos considerar o ponto de vista da gramática para o discurso (que chamamos de “olhar de baixo”), e também o ponto de vista do discurso para a gramática (que chamamos de “olhar de cima”).

Se o nosso ponto de vista sobre o TEXTO 6 for mais concreto, e olharmos “de baixo para cima” – isto é, a partir dos itens linguísticos, subindo para o texto – vamos enxergar morfemas, palavras, e grupos; as quantidades, os ingredientes e as qualidades. Itens concretos da língua, que podem ser lidos, manipulados, escritos, apagados, corrigidos.

Se o nosso ponto de vista sobre o TEXTO 6 for mais abstrato, e olharmos “de cima para baixo” – isto é, a partir descendo a partir do texto – vamos imaginar a cena em que alguém precisa aprender os ingredientes da pizza e que outra pessoa cumpre o papel de ensinar e, por isto, escreve a lista. O resultado é que, dessa forma, entendemos o significado como sendo um texto que denominamos ‘lista de ingredientes’ (ver Quadro 6).

+item linguísticoPor item linguístico, entendemos qualquer parte da língua que possui alguma forma de organização.
+realizarEm linguística, realizar quer dizer ‘tornar real, produzir, fazer surgir, fazer acontecer’.
+textoEntendemos como ‘texto’: qualquer uso da língua que faz sentido.
=significadoSignificado é: os itens linguísticos que tornam real, produzem, fazem surgir, fazem acontecer um uso da língua que faz sentido em uma determinada situação.
QUADRO 6 – O significado é dado pela realização do texto pelos itens linguísticos

Por outro lado, quando os itens linguísticos “errados” são usados, vão produzir um “texto errado”, que por sua vez não vai funcionar. Por exemplo:

EXEMPLO 1

No EXEMPLO 1, observamos que há muitas coisas que não fazem sentido. Agora sabemos o porquê. O EXEMPLO 1 ganha o nome de não-texto‘ na Linguística.

Olhando “de baixo”, o EXEMPLO 1 não faz sentido porque os “pedaços” não estão organizados como itens linguísticos gramaticais. A segmentação das palavras até que funciona, porque possui organização; mas a segmentação dos grupos não funciona, pois não é assim que classificamos os grupos.

Como vimos anteriormente, os itens linguísticos gramaticais típicos da lista de ingredientes são grupos nominais de configuração: Quantidade ^ Ingrediente ^ Classe ou Qualidade. Apesar de as coisas que estão escritas no EXEMPLO 1 possuírem a forma de grupos nominais, existem problemas com:

As Quantidades: por exemplo ‘50 quilos’ de açúcar não é uma Quantidade para o texto de uma receita de pizza; ou ‘200 ml’, que não obedece a configuração do grupo nominal (Quantidade ^ Ingrediente ^ Qualidade), e a Quantidade vem por último [leite de 200 ml].

Os Ingredientes: existem também problemas com o Ingrediente ‘sapato’. Enquanto item linguístico ‘palavra’, o sapato nunca é usado como Ingrediente em grupos nominais das receitas.

As Classes ou Qualidades: os problemas com as Classes ou Qualidades incluem ‘de sal’, que não é uma Qualidade do Ingrediente ‘farinha’, ou ‘de vaca’, que não é uma Qualidade do Ingrediente ‘ovo’. No caso de ‘fresca’, o problema está no morfema ‘-a’ que constitui a palavra como feminina, e esta, por sua vez, não pode operar em um grupo nominal cujo substantivo ‘fermento’ é masculino por causa da concordância.

Olhando “de cima”, não conseguimos imaginar uma situação em que alguém necessite produzir as coisas que estão escritas no EXEMPLO 1. Afinal, não existe uma pizza de sapato vermelho, que a massa leva farinha de sal e 50 quilos de açúcar.

Como os ingredientes da lista não ocorrem em receitas “da vida real”, e a situação é realizada pelo uso da língua na vida real, não é possível entender a situação do EXEMPLO 1 como tínhamos entendido a situação do TEXTO 6 – ensinar os ingredientes de uma pizza. Só seria possível entender a situação do EXEMPLO 1 como uma receita da “vida irreal”, por exemplo como uma piada, ou uma ficção.


Então, vai um linguista aí?


Assim como toda forma de conhecimento científico, saber sobre a língua do ponto de vista da ciência pode nos ajudar a entender melhor a nossa ferramenta mais valiosa de comunicação e o nosso melhor recurso para produzir significado – a língua (ou as línguas) que falamos e escrevemos.

Nós começamos este artigo falando que, em muitas ocasiões, saber exatamente o que dizer faz toda a diferença, e a escolha das palavras (ou melhor, a escolha de cada palavra) se torna muito relevante. Agora, por causa do nosso conhecimento linguístico, sabemos um pouco melhor como isso acontece.

Sabemos que é relevante a escolha não só das palavras, mas de qualquer item linguístico. Sabemos também que a relevância dos itens linguísticos depende do tipo de texto que eles estão realizando, bem como da situação em que o texto vai fazer sentido.

Quando os TEXTOS 1 a 4 foram apresentados, pudemos ver que eles mostraram alguns problemas de comunicação, entre ‘o que a gente quer dizer’ e ‘o que as pessoas entendem quando a gente fala’. Agora, conseguimos identificar e explicar melhor estes problemas de comunicação porque entendemos mais sobre a natureza linguística do significado.

Na verdade, dizer o que a gente quer dizer implica em sabermos escolher exatamente os itens linguísticos que vão realizar o texto que estamos produzindo. Da mesma forma, ter conhecimento dos diferentes tipos de texto e entender que cada texto realiza uma situação é importante.

Por isso, se nós não produzirmos um texto “certo” para uma situação, vamos acabar deixando os nossos ouvintes “perdidos”, e provavelmente eles vão começar a imaginar uma situação diferente para o nosso texto. É isto que acaba levando os nossos ouvintes a entenderem uma coisa diferente quando a gente fala.

O EXEMPLO 1 foi apresentado como uma coisa “fora da vida real” e, de fato, ele é apenas um exagero dos problemas que podemos ter com o significado no nosso dia-a-dia; especialmente nas ocasiões mais importantes. Porém, apesar de exagerados, os problemas do EXEMPLO 1 são os mesmo que encontramos nos TEXTOS 1 a 3, que aconteceram de verdade, na vida real.

TEXTO 1 a ‘1 sapato vermelho’ não possui significado (afinal, o que quer dizer um ingrediente de uma pizza que é um sapato vermelho?!). Isto porque, para o texto ‘receita de pizza’, este item linguístico não consegue realizar uma parte do texto que faça sentido na situação ‘ensinar os ingredientes de uma pizza’.

Contudo, no TEXTO 1, quando a Paulina ligou para a Maria, dizendo “Adivinha? Tem muito tempo que a gente não se fala. Será que você já esqueceu?” e a Maria respondeu “Ana?”; a Maria gerou exatamente o mesmo problema, porque, na situação ‘renovar a amizade através de uma surpresa’, não conseguiu escolher um item linguístico que realizasse o texto adequado para esta situação.

Em outras palavras, se descontarmos o exagero, ‘1 sapato vermelho’ é tão estranho de aparecer no texto ‘lista’ para a situação ‘ensinar os ingredientes de uma pizza’ quanto ‘Ana?’ é estranho de aparecer no texto ‘conversa cotidiana’ para a situação ‘renovar a amizade através de uma surpresa’.

TEXTO 2 à Vamos fazer de conta que a pessoa que produziu o EXEMPLO 1 estivesse, de fato, tentando escrever uma lista de ingredientes de pizza. Porém, como fez muitas escolhas não adequadas, acabou deixando o ouvinte sem entender nada. O ouvinte, por sua vez, sempre busca entender o significado dos textos, o que é feito procurando na realização linguística o jeito como o texto faz sentido na situação.

Mais acima, dissemos que o EXEMPLO 1 só faz sentido – ou seja, possui significado – se for entendido como uma coisa “fora da vida real”, como uma piada ou ficção. Na “vida real”, sapato vermelho é um tipo de calçado; “fora da vida real”, sapato vermelho é um ingrediente de pizza.

No TEXTO 2 acontece exatamente o mesmo problema, porque o aluno produziu um texto que foi entendido de forma completamente diferente pelo professor. O que o professor entendeu no TEXTO 2 foi uma ficção. Na “vida real”, o aluno grava as aulas para tirar dúvidas depois; “fora da vida real” ele grava as aulas para ficar rindo do professor.

TEXTO 3 à ‘Ovo de vaca’, é uma coisa muito estranha e, imediatamente, identificamos que este suposto grupo nominal não tem significado. Isto porque a Qualidade ‘de vaca’ nunca acompanha ‘ovo’.

No TEXTO 3, quando o Debatedor 1 diz ‘proibição absurda’, gera exatamente o mesmo problema, porque, na situação do ‘debate sobre a proibição das drogas’, uma palavra de avaliação tão carregada como ‘absurda’ não pode ser a Qualidade que acompanha ‘proibição’.

Compreender estes problemas e, a partir de um conhecimento técnico ser capaz de analisar e propor explicações é um movimento importante para entendermos melhor sobre as dificuldades de comunicação e a forma de como resolvê-las. Quanto mais nós refletimos e pensamos sobre a forma de usar a língua, mais entendemos como ela funciona. Igualmente, quanto mais nós baseamos a nossa atividade linguística – falar e escrever – em conhecimento sistemático, melhor é o resultado da nossa produção.

[1] Catálogo da Língua Brasileira. O CALIBRA é um corpus (isto é, um conjunto de amostras de textos, que são coletadas e armazenadas para pesquisa linguística) compilado a partir do uso real da língua (tanto fala quanto escrita) no contexto de cultura do Brasil.

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