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O que a linguística tem a dizer sobre o tal “português errado”

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É muito comum, no nosso dia-dia, nos depararmos com pessoas dizendo coisas como:

  • Eu não sei bem nem o português, como vou conseguir aprender inglês?
  • O lugar onde melhor se fala português é em Portugal.
  • O certo é falar assim porque se escreve assim.
  • É preciso saber bem a gramática para falar e escrever bem.

Mas até que ponto essas frases são verdadeiras, ou melhor, até que ponto elas correspondem à realidade da nossa língua? A Linguística, ciência que tem por objetivo analisar e descrever a Língua, pode ter algo a nos dizer sobre isso.


Primeiro, vamos definir o que é “gramática.


Percebe que as frases acima nos levam a crer que a gramática e a própria língua são julgadas em termos de “isso é melhor, isso é pior”? Pois então, acontece que o termo “gramática” caiu no uso popular como sendo coisa de escola ou da aula de português, ou que ela nos ensina o jeito certo de falar e escrever, ou que aprender gramática te ensinará tudo que você precisa saber sobre a língua portuguesa.

Para a Linguística, a gramática não é apenas uma parte da aula de português. A gramática é um nível da língua; é o recurso que todos nós usamos para organizar aquilo que a gente fala (fonética e semântica-discursiva seriam outros níveis). Ou seja, tudo que falamos possui uma organização gramatical que permite que outra pessoa nos entenda. E começamos a usá-la logo que aprendemos as primeiras palavras na infância.

Figura 1 – Observe que as três frases têm níveis de organização gramatical que vão desde o perfeitamente claro e ordenado até o quase incompreensível.

Até mesmo se eu te disser: Cê vai lá nas cachoeira amanhã?, você vai entender o que eu te disse, pois a frase possui uma organização gramatical. Mas logo aprendemos que existe um jeito que grande parte da sociedade considera “correto” de falar ou escrever essa frase. Ficaria mais ou menos: Você irá até às cachoeiras amanhã?

Mas, por que nos cobram, tanto na escola quanto fora dela, maneiras específicas de falar e de escrever que achamos até difíceis de aprender? Por que aquela matéria das aulas de Português chama-se gramática? Quando estamos crescendo, já não aprendemos um jeito de falar que qualquer um entende e com uma gramática que qualquer um que conhecemos compreende? Bastaria aprender a escrever!

Para explicar melhor como e porque isso é assim, tratarei de dois tipos de estudo da gramática. Também os relacionarei ao trabalho do linguista. A primeira das gramáticas, a gramática prescritiva, tem a ver com aquele português tido como “mais correto” . A segunda é a gramática descritiva, ela descreve o modo como os falantes estão fazendo uso da língua, independente de qualquer julgamento.

Também tratarei da ligação entre nossos modos de falar e as situações cotidianas. Especificamente, aquilo que as pessoas entendem como adequado ou aceitável em algumas ocasiões e que pode não ser em outras.


Gramática normativa e gramática descritiva


O estudo que trata da gramática de uma língua em termos de “certo e errado” chama-se gramática prescritiva ou gramática normativa. Ela tem esse nome porque contém “normas” de como escrever que “prescrevem” (regulam) a organização gramatical dos falantes. Seus livros, ou metodologias se preferir, são escritos com o intuito de manter uma norma padrão na língua, ou seja, tentar fazer com que todos escrevam e conversem de acordo com um português considerado “oficial”.

Em uma mesma língua, há diferentes formas de falar a mesma língua, há variação linguística. Então, no fim das contas, essa norma padrão não consegue abarcar toda a variação que existe na sociedade, tornando-se algo que deve-se aprender à parte do jeito que falamos.

A norma padrão é reconhecida pelos falantes, mas nunca totalmente conhecida por eles. Ela é quase uma exigência para todos que buscam ascensão social, mas não é do domínio de todos. E quem não tem o domínio se vira como pode…

Figura 2 – Para os que julgam, a ortografia dessa frase é motivo de riso e desdém. Para os que compreendem, ela é um singelo convite de boas vindas de alguém que tem pouco domínio sobre a língua escrita.

Essa norma padrão tem relação direta com a norma culta, que seria o jeito considerado “culto” de falar, do qual certas pessoas tem mais domínio; aquelas com maior carga de leitura, as que tiveram melhores oportunidades de estudo ou que, simplesmente, tem maior contato com esse tipo de linguagem.

A norma padrão também é de interesse dos linguistas, não pelo que ela nos diz sobre os fatos da língua, mas sim pelo que ela pode nos dizer sobre os valores e julgamentos da sociedade em uma determinada época.

A abordagem que os linguistas empregam em seu trabalho é a gramática descritiva. Um livro de gramática desse tipo não faz julgamentos sobre o que é bom ou ruim, certo ou errado. Ele é um relato de como os falantes estão se comunicando através da língua. Aqui o objetivo dos linguistas é simplesmente descrever a gramática (nível da língua) que permite que os falantes se comuniquem.

Por exemplo, se um linguista está escrevendo uma gramática descritiva do português brasileiro contemporâneo, é provável que não encontremos no livro fenômenos gramaticais como a ‘concordância do verbo ser com o pronome vós’. Afinal, é bastante improvável que alguém por aí te elogie como: “Vós sois muito simpática”, pois é algo que está praticamente extinto do português falado contemporâneo.

Assim como um linguista, um físico não julga a equação da onda, apenas a descreve. Um químico não julga ligação covalente, apenas a descreve, etc. Vale lembrar que a astronomia/heliocentrismo sofria juízo de valor na renascença ao invés de um enfoque apenas  descritivo. Qualquer um que descrevesse a Terra orbitando em torno do Sol era executado pela inquisição.

Embora nosso objetivo de descrever signifique que não rotulamos esses usos como ‘errados’, uma gramática descritiva também deve nos permitir explicar as restrições ao uso de tais formas não-padronizadas. Não em termos de ‘certo’ e ‘errado’, mas sobre o que as pessoas dizem ser ‘apropriado’ e ‘inapropriado’.


O que é apropriado aqui, pode ser inapropriado ali.


Vivemos em uma sociedade que está repleta de modos de falar e de escrever específicos para várias ocasiões e para diferentes situações. “Com licença, só um minuto…” e “Peraí, mano…” são frases que podem ser usadas em duas situações muito distintas mas que significam a mesma coisa. Chamamos esses modos de registros, ou seja, empregamos um tipo de registro para cada tipo de contexto.

Não há como fugir do registro. A prova de redação do Enem, por exemplo, cobra uma escrita bastante padronizada, com uma organização gramatical diferente da que a maioria das pessoas usa para falar. Em noticiários e revistas também temos contato com uma escrita parecida. Se não nos acostumarmos com essa linguagem, como iremos, sequer, nos manter bem informados?

Figura 3 – Na busca por interação com o consumidor, às vezes as marcas adotam uma linguagem mais espontânea e coloquial, criando uma “quebra de expectativa” no leitor. No tweet acima, alguém resolveu fazer o inverso e julgar a linguagem coloquial da empresa.

A língua falada também é assim. Falamos de modo mais culto, como em entrevistas de emprego, numa conversa com atendente de operadora, ao escrever um e-mail para alguém importante, etc. É muito comum as pessoas enxergarem esse modo de falar como uma demonstração de respeito pelo outro ou mesmo de educação.

É como se a língua fosse um guarda roupa. Você não vai ir de bermudão e chinelo pra uma entrevista de emprego ou usar camisa de manga comprida na praia, né? Poderia até fazer isso, ninguém te impediria, mas, no mínimo, os outros te estranhariam, o que é bom evitar.

No caso da língua, é bom usar gírias e principalmente na presença de amigos, mas pode ser problemático usá-las em uma audiência de tribunal. Também não seria bacana explicar algo da área da linguística usando monte de termos técnicos para aquele mesmo amigo.

É tudo uma questão de encontrar o eixo de equilíbrio entre adequabilidade e aceitabilidade. Nós estamos sempre tentando adequar o nosso jeito de falar ou escrever ao que consideramos que o interlocutor vai aceitar, ou seja, reagir positivamente à nossa linguagem. No fim das contas, isso se resume a uma questão de “quem diz o quê, a quem, como, quando, onde, por quê e visando que efeito…”.


Compreender é melhor do que julgar


Infelizmente, as pessoas ainda têm pouco conhecimento sobre o papel tanto das normas quanto da variação linguística dentro de sua própria língua. Isso pode ter a ver com o desconhecimento da figura do linguista e de seu status de referência no assunto.

Uma variação linguística corresponde à um modo diferente de ver o mundo, de nomear a realidade. Seria impossível padronizar a língua completamente com todos vivendo realidades distintas, a língua é tão viva como nós!

Um letramento linguístico e não apenas gramatical poderia estimular as pessoas a observar e a refletir mais sobre essas questões. Poderia amenizar o julgamento. Então, deixariamos de lado o foco tão exagerado nesse grande número de regras que chamamos de gramática normativa e que, infelizmente, ainda governa o senso comum.

Referência bibliográfica:

EGGINS, Suzanne. Introduction to Systemic Functional Linguistics: 2nd Edition. 2. ed. rev. London: Continuum, 2004. 384 p.

Halliday, M. A. K. (2002). On grammar. (Collected works of M.A.K. Halliday). London: Continuum.

BAGNO, Marcos. Preconceito Linguístico: O que é como se faz. São Paulo: Loyola, 2001.

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